Rio - Quando Clara Nunes adentrou os estúdios da antiga gravadora Odeon, em 1966, para gravar o LP de estreia ('A Voz Adorável de Clara Nunes'), a imagem de cantora de samba, ligada às sonoridades afro-brasileiras, ainda não havia se cristalizado. Ao contrário: por aqueles tempos seu repertório incluía baladas, boleros, sambas-canção e até flertes aqui e ali com o iê-iê-iê da Jovem Guarda.
A cantora, declarada morta no dia 2 de abril de 1983 devido a um choque anafilático, teve uma obra que permite diversas leituras. Quem deixa claro é seu biógrafo, Vagner Fernandes, prestes a relançar a biografia 'Guerreira da Utopia', publicada originalmente há 11 anos pela Ediouro. O livro retorna no segundo semestre.
"A Clara rejeitava o estigma 'sambista', achava reducionista. Autodenominava-se uma artista da música popular brasileira. E podemos constatar isso por meio de sua discografia. Ela cantou Tom Jobim, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Antônio Maria, João Bosco. E também Cartola, Nelson Cavaquinho, Candeia, João Nogueira, Mauro Duarte, Monarco", conta o escritor.
CLARA PARA CRIANÇAS
O livro, ao lado dos musicais 'O Mar Serenou - Um Conto de Clara', de Cazé Neto (que estreia sexta no Teatro João Caetano) e 'Deixa Clarear' (que retorna de 20 a 22 de abril, em sua 24º temporada, no Theatro Bangu Shopping) traz de volta lembranças da cantora. Cuja música permanece encantando e inspirando pessoas que não puderam vê-la ao vivo. A cantora e atriz Clara Santhana, que interpreta a xará ilustre em 'Deixa Clarear', por exemplo, ganhou uma fã de 4 anos, a Flora Esteves.
"Ela me conhecia de outro espetáculo que eu fiz, e tinha um ano e meio quando voltei com o 'Deixa Clarear'. Ela era bem cotoquinho, mas era tão apaixonada pela peça que começou a pedir para a mãe levá-la. Ela ia vestida de Clara Nunes e dançava na plateia!", diz Clara, rindo. Florinha acabou no palco com a atriz, numa das sessões da peça, dançando o sucesso 'Morena de Angola'. E a artista foi ao aniversário de 4 anos da menina. O tema da festa? Clara Nunes. "Como ela era bem pequena, ela não tinha a compreensão de que eu não era a Clara Nunes, até pela coincidência do nome", conta.
CLARA NO TEATRO
'Deixa Clarear' esteve em cartaz até ontem no Teatro Clara Nunes, inaugurado em 1977 pela cantora, no Shopping da Gávea. A temporada reinaugurou oficialmente a casa no dia 22 de março - o equipamento cultural fora atingido por um incêndio em junho de 2017. Com texto de Marcia Zanelatto, direção de Isaac Bernat e direção musical de Alfredo Del Penho, o espetáculo costura histórias da cantora com clássicos de seu repertório. "A peça funciona como homenagem. A gente fica mais na carreira da Clara, não entra na biografia dela", conta Clara Santhana.
Já 'O Mar Serenou' é uma alegoria que leva o universo da cantora para o terreiro que ela frequentava, o Palácio de Iemanjá, em Olinda (PE). Pai Dudu conta a história de Clara e a comunidade local une 'causos' seus aos dela. A cantora é interpretada por três atrizes, Fernanda Sabot, Fernanda Misailidis e Renata Tavares.
"Cada uma de nós representa uma face da Clara: a força, a leveza e a sensualidade", conta Renata, a cargo do lado guerreiro da cantora. "A plateia se emociona muito. Fizemos no Planetário da Gávea, que é como um anfiteatro, e as pessoas iam falar com a gente chorando. Ainda hoje a Clara abre discussões imensas, por ter cantado os ritos afro-brasileiros e por ter sido uma mulher no samba".
HOMENAGEM EM SHOW E DISCO
A sambista curitibana Branka tem um projeto musical, atualmente fora dos palcos, chamado 'Branka Canta Clara', surgido de pedidos de fãs para que fizesse um espetáculo dedicado apenas à obra dela. "Tive apoio do Adelzon Alves (um dos primeiros produtores de Clara). Ele chegou a participar dos meus shows contando histórias de bastidores", conta Branka, que acaba de lançar seu disco autoral, 'Trilogia Flores Douradas'. Em meio a composições próprias (algumas feitas com parceiros como Xande de Pilares e Carlinhos Sete Cordas), trouxe para o repertório 'Clareia', dada a ela pela amiga Norma Acquarone, e que homenageia Clara Nunes.
"A música surgiu de um sonho que ela teve com a Clara. Norma entrava num quarto escuro e punha as mãos num baú, com um tesouro. De repente, sentia uma presença. Era a Clara Nunes, que disse: 'Isso tudo pertence a você, Norma, e vai vir através de alguém'. Me emocionei muito quando a Norma me contou isso. A Clara é eterna", diz.