Por SELECT ART

May You Live in Interesting Times, a exposição internacional da 58ª Bienal de Veneza, inaugurada em 8/5, carrega um enigma a ser decifrado. “Interessante” é uma palavra que não dá conta do que acontece no mundo hoje. Dizer que algo é interessante é rejeitar a sua especificidade, afastá-lo do território do problema, conferir-lhe um caráter genérico. Daí vem o incômodo causado pelo título da mostra com direção artística de Ralph Rugoff, curador da Hayward Gallery, de Londres. A frase, de complexa tradução para o português, já é uma tradução em si: segundo o texto curatorial, seria a tradução que certo diplomata britânico teria feito, nos anos 1930, de certo provérbio chinês antigo, voltando de uma viagem ao Oriente.

Embora Rugoff argumente (tanto no texto quanto na coletiva de imprensa, na abertura) que dizer interessante é o mesmo que se referir à precariedade da existência, a tempos desafiadores e ameaçadores, poderíamos aqui contra-argumentar que nefasto, atroz, extremo, regressivo ou pós-apocalíptico são adjetivos que expressam com mais acuidade o tempo presente. Soa um tanto simplista dizer que “a arte pode ser um tipo de guia sobre como viver e pensar em ‘tempos interessantes’”. A afirmação soa como o statement de uma exposição para uma sociedade sem conflito, construída desde o ponto de vista do homem branco europeu que pensa a contemporaneidade a partir da ideia de uma “ordem mundial do pós-Guerra”.

Mas pós-Guerra para quem? Nos dois edifícios que recebem a curadoria central da Bienal de Veneza, o Pavilhão Central do Giardini e o Arsenale, os trabalhos expostos de 80 artistas convidados falam por si. De uma forma ou de outra, estão ali representadas as guerras contemporâneas – a decretada pelo Estado Islâmico, as guerras civis em sociedades ditatoriais árabes e africanas, as zonas de violência e convulsão social nos países latino-americanos, os conflitos raciais etc. –, mostrando que o tempo histórico em que vivemos é de catarse e não de pós-Guerra. No entanto, é certo que a mostra assume um partido na direção inversa ao documental. Rugoff argumenta que “arte é mais que um documento de seu tempo”. Ele aponta que “em contraste ao jornalismo ou à reportagem histórica, a arte articula uma diferença da textura dos fatos”.

O desafio posto é então buscar sentidos para o enigma. Como seria a sentença original em chinês? Que outras traduções seriam possíveis? As dúvidas lançadas pelo título refletem-se nos espaços expositivos: não há um guia nem uma só direção a seguir. Cabe ao espectador buscar entre as obras as relações que tecem os fios narrativos da exposição. A invenção de mundos na era da pós-verdade e das fake news é um desses fios. A desconstrução de certezas e a imaginação de outras verdades são o que se extrai da melhor parcela dos trabalhos expostos.

É tudo verdade
BLKNWS (2018 – em processo), do norte-americano Kahlil Joseph, lida explicitamente com a manipulação de notícias e imagens extraídas do YouTube e de lives de Instagram. Concebido com um programa de televisão sobre a vida de negros americanos, apresenta em dois canais uma edição que mistura filmagens amadoras com imagens produzidas pela grande mídia. Examinar as noções de raça articuladas na cultura midiática, relativizar e tomar posse do discurso construído pelo poder é uma estratégia que Kahlil Joseph compartilha com Arthur Jafa, o vencedor do Leão de Ouro da 58ª Bienal. Jafa apresenta no Pavilhão Central do Giardini o estarrecedor The White Album (2019), vídeo de 50 minutos com cenas surreais de opressão da supremacia branca sobre pessoas negras – tudo apropriado da internet, tudo real.

O prêmio a Jafa confirma o protagonismo que as narrativas da diáspora africana e de sua descendência pós-colonial alcançam no sistema de arte internacional. Bastante expressivo nesta Bienal o conjunto de artistas abordando questões socioculturais, identitárias e migratórias da negritude. Entre eles, o norte-americano Henry Taylor; a nigeriana residente em Antuérpia Otobong Nkanga (menção honrosa); a nigeriana residente em Los Angeles Njideka Akunyili Crosby; e o queniano residente em Londres Michael Armitage. Diversidade de gênero e visibilidade lésbica orientam a fotografia performática da sul-africana Zanele Muholi. Mas a demarcada presença da pintura como linguagem partilhada entre a maioria desses artistas faz lamentar a ausência da pintura do brasileiro Arjan Martins, que teria contextualizado essa discussão no Sul global. 

Ficção científica e espelhismos
Literatura e ficção são cooptadas pela francesa Dominique Gonzalez-Foerster na invenção de outras realidades – futuras e passadas. Ela participa da Bienal com dois trabalhos que remetem à vida e ao ambiente extraterrestre: Endrodome (2019) é sua primeira experiência com realidade virtual e Cosmorama (2018), em colaboração com Joi Bittle, é o diorama da paisagem desértica de um planeta indefinido, baseada nas Crônicas Marcianas (1950), de Ray Bradbury.

As duas obras novíssimas e inéditas da cultuada alemã Hito Steyerl discorrem sobre realidades secretas ou escondidas em ambientes de tecnologia, poder, corrupção e indústria armamentista. A instalação imersiva This is the Future (2019), no Arsenale, constrói uma ficção sobre uma mulher do futuro que deve esconder seu jardim para protegê-lo da depredação. No Pavilhão Central, Leonardo’s Submarine (2019) é uma viagem submarina metafórica em uma Veneza pós-atômica.

Catástrofes e hecatombes formam um eixo narrativo importante dos trabalhos em exibição, tanto na curadoria de Rugoff quanto em Pavilhões Nacionais, que este ano somam 90, têm seus próprios curadores e não necessariamente se relacionam com a temática da curadoria central. Exemplo, Heirloom (2019), no pavilhão da Dinamarca, instalação da dinamarquesa-palestina Larissa Sansour, composta de um filme de ficção científica em dois canais, uma escultura instalativa e uma intervenção arquitetônica. O combo faz com que o espectador do filme In Vitro (2019) – que se passa na cidade de Jerusalém décadas depois de um desastre ecológico –, ao sair da sala escura, se sinta adentrando fisicamente no mesmo filme. Trata-se aqui de um eficiente e surpreendente mecanismo de sobreposição das esferas real e virtual. Sendo brasileiro, o espectador sente ainda mais estranheza ao reconhecer na cena de abertura do filme – um mar de petróleo que varre rua da antiga Jerusalém, seguido de explosão – os desastres criminosos de Brumadinho e Mariana e a  destruição do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio.

Também em dois canais, Doppelgänger (2019), do canadense Stan Douglas, conta a história de uma personagem que vive simultaneamente em duas dimensões. O filme parte de uma pesquisa científica do artista sobre o conceito de “entrelaçamento” da física quântica, em que duas partículas estão tão próximas que podem partilhar da mesma existência. No contexto de uma mostra que se propõe a encarar o fenômeno das fake news, o jogo de espelhos e distorções proposto no filme de Douglas pode ser lido como uma metáfora da paisagem social polarizada do mundo contemporâneo, em que crenças contraditórias operam simultaneamente para explicar os fatos.

Objetos tangíveis
Duas artistas que escapam das realidades paralelas e referem-se a situações tão palpáveis quanto a existência das fronteiras são a mexicana Teresa Margolles e a indiana Shilpa Gupta. Em uma operação readymade, Margolles reconstrói fragmento de um muro da fronteiriça Ciudad Juárez, no México, com tijolos de concreto retirados do local. Em Untitled (2019), Gupta produz um portão residencial mecânico que, com a força do impacto, destrói as paredes sobre as quais se articula.

A realidade disruptiva sugerida por Gupta é também a força motora das duas instalações do duo chinês Sun Yuan e Peng Yu. Can’t Help Myself (2016) consiste em um cubo hermético de paredes de acrílico que contém um robô gigantesco e ameaçador. Sua fatura é uma soma de realidade e invenção: trata-se de uma engrenagem robótica, apropriada da indústria automobilística, porém com duas alterações decisivas: no sistema (o robô ganhou uma programação de 32 diferentes movimentos) e na forma, com a acoplagem de uma espécie de pincel em sua extremidade, encarregado de conter um líquido vermelho e viscoso em uma área predeterminada, e o comportamento compulsivo e imprevisível do robô e a cor sanguínea do líquido que ele maneja levam o espectador a imaginar-se dentro de um filme-catástrofe, em que a máquina se liberta do homem e domina o mundo.

Ainda que inventiva, temos também aqui uma Bienal objetual, isto é, baseada em obras escultóricas – muitas delas com um forte teor de investigação formal. A escassez de proposições de ações imateriais, em contextos sociais locais da cidade de Veneza, pode ter contribuído para a premiação do pavilhão nacional da Lituânia com o Leão de Ouro, “pelo uso inventivo de uma ópera de Brecht e pelo engajamento do pavilhão com a cidade e seus habitantes”.

Não que o pavilhão brasileiro, que mostra o potente Swinguerra (2019), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, não merecesse ter ganhado um Leão ou uma menção qualquer. Verdade que a comunidade internacional da arte perdeu a oportunidade de apoiar politicamente a bandeira do swingue, da liberdade de expressão e da diversidade de gênero levantada pela instalação. Como bem apontou Lisette Lagnado, curadora da próxima Bienal de Berlim, no Instagram: “Como representar um país que extingue o Ministério da Cultura, faz cortes em todas as instâncias da educação e extermina sua juventude preta por meio de milícias do Estado? A resposta de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca é de arrepiar”.

Swinguerra (2019), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, no Pavilhão brasileiro

 

Tudo termina onde começa: entre nuvens. De Tomás Saraceno, que propõe um mecanismo de leitura de mensagens contidas nas nuvens, na instalação Aero(s)cene (2019), ou de Lara Favaretto, Thinking Head (2017-2019), formada por jato de nuvem de vapor na fachada do Pavilhão do Giardini e instalação com arquivo de objetos no interior. Obra das menos palpáveis de toda a Bienal, Thinking Head é composta de um think tank clandestino e de locação mutável, onde se discutem sentidos possíveis e impossíveis para palavras-chave como “fake”, “hacker”, “minority” etc. Na instalação, coleções de objetos materializam esses sentidos. Também se poderia acrescentar aqui a palavra-chave “interesting”. Interessante é expor, como uma espécie de troféu, um monumento do desastre da dimensão do barco naufragado em 2015 no caminho entre a Líbia e a ilha italiana de Lampedusa, onde morreram centenas de imigrantes ilegais? Que fatos e que objetos você reuniria sob a classificação “interessante”?   

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