Por SELECT ART

Em 2019 comemoramos o primeiro centenário da Bauhaus. Porém, não cabe mais a nós render-lhe homenagens. Seu lugar na história já está assegurado, ao lado de outros experimentos de vanguarda. Cabe a nós perguntar o que dela nos interessa hoje.

O mundo não é mais o mesmo da escola alemã. A diferença não é apenas cronológica, mas de tempo histórico. A Bauhaus surge no século que se inicia com a Grande Exposição de 1851 e se encerra com a canonização do modernismo nos Estados Unidos da América, a partir dos anos 1930. A escola é uma resposta à crise da arte europeia, advinda do processo de modernização e industrialização da sociedade que culmina na Primeira Guerra Mundial. Contudo, a questão inicial da Bauhaus não é a criação de modelos para a indústria, mas a formação de um novo homem¹ para um novo mundo. A rigor, sua proposta educacional centra-se no indivíduo. Walter Gropius e Johannes Itten pretendem libertar o artista do peso morto das convenções da arte acadêmica e burguesa. Sua primeira orientação é expressionista, e até certo ponto romântica. A contraparte desse individualismo é dada pelo conceito de Bau: a um só tempo o fundamento de uma prática coletiva e o objetivo final de todas as artes. A escola almeja aquela unidade perdida no mundo moderno entre as belas-artes e as artes decorativas, entre arte e vida, entre gosto e moral. Para tanto, ela lança mão de uma nova concepção de ensino e propõe a formação de um novo artista, visando a síntese entre a sua prática individual e um projeto comum de orientação social.

À parte a discussão sobre o sucesso ou o fracasso do experimento, a questão que se impõe é se uma tal proposta ainda tem sentido. Não nos referimos à estrutura curricular ou aos princípios formais desenvolvidos na escola, mas ao seu compromisso com a construção de um novo mundo, ou nas palavras do manifesto, com a nova construção do futuro (dem neuen Bau der Zukunft). O mundo do pós-guerra abalou de tal forma nossa fé em qualquer projeto de natureza social e educacional, que a escola parece-nos agora um exercício de extremo otimismo. E por mais que o problema da produção industrial não tenha se resolvido, a questão da arte industrial já não nomeia mais o nosso problema. Passados os Trinta Anos Dourados do capitalismo, questões de ordem ambiental, social e política combinam-se de tal forma que os novos problemas já não competem exclusivamente a ninguém, muito menos aos artistas.

O mundo que emerge após a Segunda Guerra Mundial é o das grandes organizações. Ele opera de acordo com os princípios da administração e do planejamento. Nele, a arte imaginada pelos bauhausianos já não sustenta sua pretensão de coordenadora geral da produção, em suas acepções moral e estética. No seu lugar surge uma noção mais abstrata e problemática de design, de natureza processual, teorizada entre os anos 1950 e 1960 na Escola de Ulm e pelo Movimento Design Methods. Tal concepção baseia-se na possibilidade de se ensinar métodos universais de resolução de problemas. No limite, considera-se o design uma transdisciplina, compartilhada por diversos profissionais. No início dos anos 1970, são feitas as primeiras formulações acerca de um saber geral do projeto, a ser implementado no currículo básico das escolas inglesas.

No entanto, nenhuma dessas propostas vinga. O nosso século continua a desafiar a prática e o ensino das artes ditas construtivas, bem como o próprio exercício do projeto. No coração dessa dificuldade encontra-se uma perda de confiança no futuro. Trata-se de uma certa desesperança, que se instala no período da Guerra Fria, e cujos efeitos sobre a educação são evidentes. Na medida em que se ocupa dos novos, toda escola tem de criar para si uma imagem do futuro. O educar exprime assim uma crença no mundo e na possibilidade de transformá-lo. Em contraposição às academias de arte do seu tempo, a Bauhaus é o melhor exemplo de um gesto de confiança, face ao horror e à destruição da guerra. Seu objetivo é a reconstrução do mundo, a partir do zero. Mas, com o passar do tempo, esse objetivo tornou-se cada vez mais nebuloso e distante. Em outras palavras, o que mudou foi a própria concepção de futuro. Entramos na era da incerteza², na qual tudo parece escapar à previsão e ao controle.

O que resta então do experimento da Bauhaus? Resta a ousadia de educar para o futuro, tendo em vista o conservadorismo das instituições educacionais e às incertezas do nosso mundo. Como uma escola lançada ao futuro, a Bauhaus é um caso de ensino não apenas progressista, mas também futurista. Reconhecemos nela uma escola do próprio tempo, isto é, do tempo em que o futuro era o principal objeto de nossas preocupações. Nesse sentido, imitar a Bauhaus não é copiar os seus métodos, mas adotar uma atitude semelhante em relação ao porvir. Essa atitude consiste basicamente em questionar tudo aquilo que nos foi legado, incluindo agora o ensino bauhausiano, porque é isso que exige o espírito de modernidade.

A Bauhaus representa um breve momento de esperança, sobre o qual vale a pena nos debruçarmos em nossa busca por novas formas de educação. De lá pra cá, aprendemos que a confiança não se baseia na certeza, senão ao contrário: ele é necessária justamente frente ao futuro contingente. Na sua época, a Bauhaus procurou recolocar o mundo em ordem, apelando para a ideia de construção. Por mais que hoje desconfiemos dessa ideia, herdamos o problema que fora o dela, a saber, o de educar para o desconhecido. E esse é um dos problemas fundamentais da educação, nas palavras da pensadora Hannah Arendt:

Basicamente, estamos sempre educando para um mundo que está fora dos eixos ou que caminha para isso, pois essa é a situação humana básica, na qual o mundo é criado por mãos mortais para servir de lar aos mortais por um tempo limitado. Visto que o mundo é feito por mortais, ele se desgasta; e visto que o mundo transforma continuamente seus habitantes, ele corre o risco de tornar-se tão mortal quanto eles. Para preservá-lo da mortalidade dos seus criadores e habitantes, o mundo deve ser constantemente reordenado. O problema é simplesmente o de educar de tal modo que a reordenação continue a ser efetivamente possível, ainda que ela nunca possa, obviamente, ser assegurada. Nossa esperança depende sempre do novo que cada geração traz; porém, precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, tudo destruímos se tentarmos controlar o novo de tal forma que nós, os velhos, possamos ditar como ele se parecerá.” ³

¹ O uso da palavra “homem” neste ensaio remete a uma época anterior às discussões sobre gênero. Ao contrário do que ocorre no alemão, não há no português uma diferença entre “homem” como ser humano e “homem” como sujeito do gênero masculino. A palavra correspondente aqui seria Mensch.

² Galbraith, John Kenneth. The Age of Uncertainty. Boston, Houghton Mifflin Company, 1977: “In the last century capitalists were certain of the success of capitalism, socialists of socialism, imperialists of colonialism, and the ruling classes knew they were meant to rule. Little of this certainty now survives. Given the dismaying complexity of the problems mankind now faces, it would surely be odd if it did.” (p. 7)

³ The Crisis in Education” [1954]. Between Past and Future [1961]. New York: The Viking Press, p. 192. Tradução nossa.

Felipe Kaizer é designer gráfico e pesquisador. Atualmente é doutorando de história e teoria do design na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI/UERJ). Em 2006, graduou-se em desenho industrial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Entre 2005 e 2009, trabalhou em escritórios de design no Rio de Janeiro, entre eles Tecnopop, Tabaruba e Jair de Souza. Em 2009 participou da criação do departamento de design e comunicação da Fundação Bienal de São Paulo, onde permaneceu até 2015. Em 2017, integrou a equipe de comunicação do Instituto Moreira Salles em São Paulo. fk@felipekaizer.com

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