Abuso infantil - Divulgação
Abuso infantilDivulgação
Por Priscila Correia
Rio - Hoje mãe de quatro crianças, Alessandra conheceu seu abusador quando tinha por volta de 7 anos. Era o avô de duas amigas, que insistia em beijá-la na boca sempre que tinha oportunidade de estar sozinho com ela. As investidas dele contavam com beijos forçados – enquanto ela apertava os lábios - e abraços que passavam a mão pelo seu corpo, mas deixou cicatrizes que foram determinantes na relação dela com o avô, que tinha o mesmo biotipo que o homem que abusava dela. “Meu avô era adorado por todos os primos e pela minha irmã, mas eu nunca consegui ter uma conexão com ele, por mais que passássemos férias juntos. Só consegui entender porque tinha esse afastamento dele quando cresci e percebi que aquele homem que tentava me beijar era extremamente parecido fisicamente com o meu avô. Perdi a oportunidade de ter o pai da minha mãe por perto e aproveitar uma fase incrível com ele, por causa desse indivíduo covarde que marcou a minha infância”, conta.
Já Flávia, mãe de um casal, sofreu abuso por parte do cunhado dos 8 aos 18 anos, quando resolveu contar para a família o que acontecia. “Sou muito mais nova que minha irmã e, por isso, quando começaram os abusos, eu ainda era uma criança e ele, um adulto. No início ele me colocava no colo e eu sentia o membro dele duro, mas não entendia aquilo e ele ainda dizia que era uma brincadeira. Com o tempo, eu comecei a perceber que as tentativas de ficar sozinho comigo eram mais constantes e eu tentava escapar. Tentou me agarrar no elevador e em outros locais e sempre me ameaçava dizendo que se eu contasse, não acreditariam em mim. Cheguei ao meu limite quando fui aprender a dirigir, 10 anos depois que começaram os abusos. Como minha família não sabia de nada, me incentivaram a sair com ele para que me ensinasse. Fui com medo, mas não tinha o que dizer para não ir. Naquele dia ele tentou me agarrar dentro do carro e eu então tive coragem de contar para meus pais, que infelizmente, naquele momento, resolveram não contar para minha irmã, que estava grávida. Depois desse dia, ele nunca mais fez nada, mas começou um outro tipo de abuso comigo, o psicológico. Debochava de mim na frente das pessoas, me humilhava, fazia brincadeiras desagradáveis etc. Continuei sofrendo, mas de outra forma. Até que há poucos anos resolvi contar tudo para minha irmã. Houve uma ruptura na família, não nos falamos mais, pois ela ficou ao lado dele, mesmo ele confessando o que havia feito. Sou triste por não tê-la junto a mim, mas liberta desse pesadelo que vivi”, conta.
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As duas histórias, embora diferentes, têm um ponto em comum: o abusador era alguém próximo e que tinha contato direto com a família. Além disso, outro ponto em comum é que ambas, quando crianças, não contaram aos pais o que acontecia. “Eu não sei explicar porque nunca contei para ninguém. Acho que tinha medo de acharem que eu era culpada ou de dizerem que eu estava mentindo. Afinal, eu era uma criança e ele era um senhor respeitado, todos gostavam dele. De alguma forma eu bloqueei esses episódios e eles não impactaram nas minhas relações com namorados e no casamento, como acontece com muitas meninas”, pontua Alessandra.
A psicóloga Ellen Moraes Senra, que também é autora de livros infantis como “Feiurinha sabe tudo” e “Josefino e o uso da rotina na busca de afeto e atenção parental”, explica que as crianças que sofrem abusos terão cicatrizes que permanecerão para o resto de suas vidas, salvo quando são muito pequenas ou quando bloqueiam o trauma - mas ainda que não tenham a memória exata, os bloqueios e consequências permanecem. “A criança pode perder o sentido da infância e a sua inocência, além de aprender desde cedo que não pode confiar em ninguém. Elas também carregarão traumas psicológicos que podem levar para a vida adulta questões como culpa e dificuldade de se relacionar”, esclarece. Senra diz, ainda, que pessoas que sofrem abusos sexuais na infância podem se tornar adultos hiper sexualizados, ou aceitar outras relações de abuso, ter problemas de confiança ou até mesmo acharem que são “defeituosas” ou merecedoras do que ocorreu com elas. “Embora as marcas permaneçam de alguma forma, com o tratamento adequado é possível para a vítima compreender que ela é a vítima, e nunca a culpada. E, então, ela poderá elaborar as mágoas passadas e aprender a se relacionar de forma assertiva, sem que o trauma interfira em sua vida”, pontua. E complementa: “A vítima jamais deve ser culpada, não importa a idade, uma roupa, um olhar, um gesto. Jamais será justificativa para o outro invadir seu espaço, seu corpo ou sua intimidade. E nossas crianças, em especial, precisam ser preservadas. Por isso, nada melhor do que a educação e a informação para que coisas assim não ocorram”.
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E quando se fala em educação sexual há muita confusão com "adiantar a sexualidade", e acreditar nisso talvez seja o maior entrave para que os menores entendam que absolutamente ninguém pode tocar em seus corpos. “O que ocorre é uma grande ignorância acerca do assunto. Você não precisa falar de sexo para ensinar a criança que ela não deve permitir que toquem no corpo dela; você não precisa dizer que existe estupro quando você pode ensinar a criança que qualquer desconforto deve ser relatado. Ensinar sobre confiança também é muito importante e hoje temos livros lúdicos que mostram quem são as pessoas que podem, por exemplo, tocar na genitália para dar um banho e quem faz isso de forma má intencionada. A questão não é ensinar sobre sexo e relações sexuais, é ensinar sobre o próprio corpo e sobre limites e direitos”, complementa a psicóloga. Para a educadora Andrea Ramal, que também é autora de livros como 'Educação no Brasil - um panorama do ensino no Brasil' e 'Filhos Bem-Sucedidos – Sete maneiras de ajudar seu filho a se realizar na escola e na vida', as aulas de educação sexual são fundamentais para evitar novos casos ou para que as crianças verbalizem o que passam. Ela explica que, para uma criança saber que foi abusada, precisa entender antes o que é abuso. “A sala de aula é um espaço de conversa que previne muitas violências. A educação sexual também instrui para o uso de contraceptivos, doenças sexualmente transmissíveis e demais aspectos biológicos. As aulas devem servir para desenvolver o saber em busca de escolhas mais saudáveis e responsáveis sobre relacionamentos, sexo e reprodução”, comenta.
Andréa explica, ainda, que a escola deve ficar alerta aos sinais e denunciar, quando necessário. “A criança quase nunca fala explicitamente sobre a violência sexual que sofreu por ter medo de ser repreendida ou porque é abusada por algum parente e imagina que vai gerar uma grande briga na família. Com isso, é comum que fique calada, inclusive durante anos. Os professores podem ficar atentos aos trabalhos escolares, se a criança faz desenhos em que aparecem situações suspeitas ou redações carregadas de palavras violentas ou com cenas que indicam comportamento mais ligado à sexualidade. Essas são algumas formas que as crianças encontram para expressar algo que têm medo e timidez para falar abertamente”, explica. E faz um alerta: uma vez que a escola perceba que há algo errado com uma criança no sentido de sofrer abuso, deve comunicar aos pais ou recorrer ao conselho tutelar. "O abuso e a exploração sexual podem se manter por muito tempo, sem que a criança consiga evitar. Mas quem está perto das vítimas pode ajudar ligando para o Disque 100, que funciona 24 horas, 7 dias na semana", informa a educadora.
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Para Itamar Batista Gonçalves, gerente de Advocacy da Childhood Brasil, organização que tem como objetivo a proteção à infância e à adolescência, atuando no enfrentamento do abuso e da exploração sexual contra crianças e adolescentes, a educação é uma das formas mais eficazes de prevenir e enfrentar o abuso sexual. “Os pais não devem achar que falar de sexualidade é apenas abordar o ato sexual em si. É falar sobre as mudanças que vão acontecer no corpo da criança, a diferença entre os sexos, genitália, o que é uma gestação. Também é importante promover o fortalecimento da identidade dessa criança, da sua autoestima, ensinando sobre como ela deve se respeitar e respeitar o outro. É necessário ensinar desde cedo e com abordagens apropriadas para cada faixa etária, conceitos de autoproteção, o que é violência. Trabalhando conceitos de consentimento, o que é o corpo, como ele é composto, o que são sentimentos, a diferença entre toques agradáveis e toques que são invasivos e desconfortáveis. É fundamental trabalhar com a criança que ela pode dizer não”, enfatiza. E vai além: o diálogo deve acontecer desde os primeiros anos da criança, já que a violência sexual ocorre em todas faixas etárias - estudos mostram que informações sobre o corpo humano e a sexualidade podem tornar crianças e adolescentes menos vulneráveis à violência sexual e fornecem habilidades para que elas aprendam a identificar as situações de risco.
Para denunciar
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A advogada Marina Franco Mendonça, do escritório Mendonça e Marujo Advogados, esclarece que caso a criança esteja machucada, ela deve ser imediatamente encaminhada a um hospital, que terá a obrigação de notificar as autoridades criminais sobre o ocorrido. “Se não houver necessidade de imediato tratamento médico, o ideal é que o menor seja imediatamente encaminhado à delegacia de polícia mais próxima (se a vítima for mulher, e houver delegacia da mulher na cidade, essa tende a ser a melhor opção), para que a autoridade policial possa encaminhar também para colheita de eventuais provas, como o exame de corpo de delito.
Finalmente, se o menor não estiver sob os cuidados da pessoa, a denúncia pode ser feita em qualquer delegacia de polícia, no ministério público, no conselho tutelar, ou mesmo, de forma totalmente anônima, por meio do disque denúncia. Qualquer prova é válida para a mera realização da denúncia, como relato testemunhal, fotografias, vídeos, mensagens ou mesmo apenas a palavra da vítima”, diz. Ela comenta, ainda, que caso o abuso parta dos pais ou de alguém que more junto, a legislação prevê diversos mecanismos de proteção integral da criança. “O conselho tutelar pode determinar, a depender do caso, que o menor fique sob os cuidados de família substituta, ou mesmo de outros membros de sua família de origem. É possível, ainda, a aplicação de medidas protetivas em face do ofensor, até de caráter criminal, que o impeçam de manter qualquer contato com a vítima ou dela se aproximar”, complementa.
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Jonas Freitas, advogado e sócio do escritório Bertholdi, Martins & Freitas, lembra, ainda, que o abuso sexual em crianças não é somente quando há o estupro. “Incorre nesse crime todo aquele que tem conjunção carnal ou pratica qualquer outro ato libidinoso (como sexo oral, anal, passadas de mão, beijos lascivos etc) com menor de 14 anos. Nossa legislação penal entende que menores de 14 anos não possuem capacidade para consentir um ato sexual. Nesse caso, a violência acaba por ser presumida, ou seja, não é necessária a presença de violência ou grave ameaça e, ainda que eventualmente o menor ou a menor tenha consentido com a prática sexual, esse consentimento é irrelevante, pois considera-se o menor de 14 como vulnerável. Portanto, o sujeito responderá pelo delito da mesma forma”, diz. Além disso, conforme previsão do art. 226 do Código Penal, a pena por qualquer crime de estupro poderá ser aumentada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas, e/ou quando o agente for familiar da vítima, seja ascendente, padrasto, madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou, ainda, se por qualquer título tiver autoridade sobre ela.
Atenção aos sinais
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A seguir, Itamar Gonçalves, da Childhood Brasil, enumera alguns indicadores que devem ser levados em consideração por pais e adultos responsáveis como pontos de atenção. “A existência de um ou mais sinais nem sempre indica, com precisão, que uma criança ou adolescente sofreu violência sexual, mas são indicadores que devem ser observados”, finaliza.
1. Mudanças bruscas de comportamento sem explicação aparente
2. Mudanças súbitas de humor
3. Comportamentos regressivos e/ou agressivos
4. Sonolência excessiva
5. Perda ou excesso de apetite
6. Baixa autoestima, insegurança,
7. Comportamentos sexuais inadequados para a idade
8. Enfermidades psicossomáticas (problemas de saúde, sem aparente causa clínica, como dor de cabeça, erupções na pele, vômitos e dificuldades digestivas, que na realidade têm fundo psicológico e emocional)
9. Busca de isolamento
10. Lesões, hematomas e outros machucados sem uma explicação clara ou coerente de como aconteceram
11. Fugas de casa e evasão escolar
12. Medo de adultos estranhos ou conhecidos, de escuro, de ficar sozinho e de ser deixado próximo ao potencial agressor
13. Depressão crônica, comportamento autodestrutivo, sentimento de culpa
14. Abuso de drogas lícitas e ilícitas
15. Doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), gravidez

Em tempo: É possível denunciar pelo Disque 100, buscar o disque denúncia do munícipio e fazer uma denúncia anônima ao Ministério Público. O canal do Disque 100 funciona diariamente, 24 horas por dia. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil de forma gratuita e anônima, de telefone fixo ou celular. Qualquer pessoa pode denunciar uma violação de direitos humanos que tenha presenciado ou observado. Outro canal é o Ligue 180, que acolhe registros, analisa e encaminha as denúncias de violações dos direitos humanos das mulheres – como violência, assédio, feminicídio, entre outros. A Ouvidoria Nacional também recebe denúncias pelo site ouvidoria.mdh.gov.br. Recentemente, foi lançado o aplicativo Direitos Humanos BR, que integra o Disque 100 e Ligue 180, para receber denúncias, solicitações e pedidos de informação sobre direitos humanos e família. A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, também disponibilizou uma conta no aplicativo Telegram para a realização de denúncias.