Moira Braga em cena com o espetáculo HereditáriaJunior Zagotto/Divulgação

Rio - O que herdamos molda quem somos? A atriz Moira Braga convida o público a essa reflexão sobre a hereditariedade, identidade e a arte em sua nova peça, "Hereditária", em cartaz no Teatro Firjan Sesi, no Centro. A partir da descoberta de uma doença genética rara chamada Stargardt - que a levou à perda da visão aos 7 anos, Moira tece uma narrativa que entrelaça sua história pessoal com elementos biográficos, poéticos, da história humana e da mitologia.


Um deles é o mito grego das Moiras: três irmãs funestas que tecem o destino de todos os seres. "Hereditária" reflete sobre o quanto de nossas vidas é predeterminado e o quanto temos o poder de escolher.

“A ideia é dar uma resposta larga sobre de onde vem a doença”, explica Moira, “e abrir a reflexão para um leque mais amplo, investigando o que são nossas heranças e nossa hereditariedade, tudo que chega pra nós através da ancestralidade, tudo que fica pelo caminho, assim como as heranças que escolhemos ter”.
"Hereditária" foi planejada após Moira assistir ao espetáculo "Em Busca de Judite", com a atriz Jéssica Barbosa, onde ela conta uma história de vida pessoal.

"A ideia foi trazer esse fio de uma história pessoal, mas para esgarçar em vários outros campos e aspectos, de modo que uma história pessoal, de tão pessoal e de tão honesta, seja muito universal também, e acabe falando com todo mundo que está assistindo, em algum momento se identifica com aquelas narrativas".
Em um palco que se transforma em uma instalação sensorial, a artista convida o público a explorar os múltiplos sentidos da hereditariedade, desde os genes que carregamos até as histórias que nos são contadas. Através da dança, da música e do cenário sensorial, Moira cria uma experiência única que desafia nossas percepções.

O cenário é uma instalação visual e sonora do músico e artista plástico Ricardo Siri, composto por objetos que, ao serem manipulados (pisados, percutidos, tocados, transportados) produzem os ambientes e sonoridades da peça.

As pessoas cegas e de baixa visão podem ter acesso ao cenário e são convidadas a entrar no teatro alguns minutos antes da abertura de portas e explorar os objetos cênicos de forma táctil.
"Acredito sim que a gente faz um teatro sensorial, que é para ver, para ouvir, para sentir. E é isso que eu acredito, para ampliar essas possibilidades de acesso para a nossa linguagem teatral", diz Moira.

Sucesso em 'Todas as Flores'
A atriz se destacou com a personagem Fafa, em "Todas as Flores", disponível no Globoplay desde 2022.
Apesar do sonho de criança de ser atriz e gostar de se expor, Maira demorou para realizá-lo. Ela é carioca e foi criada em Leopoldina, no interior de Minas Gerais, tinha pouco acesso à cultura e a arte fazia parte do seu imaginário.
"Comecei a perder a visão aos 7 anos, é uma doença congênita que causa perda gradual da visão. Achava que não ia rolar de ser atriz porque não tinha representatividade. É muito recente a aparição de pessoas com deficiência em espaços públicos e principalmente em veículos de comunicação como TV, então eu achava que isso não era para mim", conta.
Atualmente ela atua em espetáculos de dança, teatro e no audiovisual. É ainda autora e bailarina há quase 20 anos, tem formação em jornalismo e descobriu seu dom na arte através da dança após assistir uma aula de mestrado de tearo como ouvinte na UniRio. Lá ela conheceu a bailarina e coreografa Angel Vianna e iniciou os estudos na escola. "Começou uma relação nova com a minha vida, com o meu corpo, comigo mesma, aí comecei a me envolver com a dança".
Em 2024 foi convidada para trabalhar na preparação de elenco da novela "Renascer". “A novela Todas as Flores tinha a temática da deficiência, a mocinha da novela, interpretada pela Sophie Charlotte era deficiente visual, mas 'Renascer' não tinha nada a ver com o tema da deficiência, então me chamaram de volta pelo meu trabalho e não pela temática”, pondera.

“Isso é muito importante pra gente, pessoas com deficiência, sermos chamadas não só para falar da deficiência. A gente quer trabalhar, fazer o que sabemos fazer”, explica a artista.

Mais do que acessibilidade
No palco, Moira contracena com duas outras atrizes, Luize Mendes Dias, também intérprete de libras, e Isadora Medella, multi-instrumentista.

Libras e audiodescrição estão incluídas de forma orgânica desde a dramaturgia até as movimentações de cena, expandindo as fronteiras do que costuma ser conhecido como “acessibilidade".

“Esse é naturalmente meu ponto de partida", diz Moira. "Quero que o meu trabalho acesse o maior número de pessoas e, por isso, fomos concebendo mecanismos estéticos e dramatúrgicos que proporcionem a expansão desse acesso."

Um musical diferente
A direção musical de Pedro junto e Isadora Medella explora as vozes, os corpos e os objetos cênicos como instrumentos musicais. Essa forma de fazer teatro recebe o nome de Teatrocanção.

"A musicalidade é o norte que ajuda a encontrar o tom da atuação, a pulsação de cada cena, mesmo quando não há nenhuma nota musical sendo tocada", diz o diretor, indicado ao prêmio Shell em 2023 pela direção musical e canções originais do espetáculo “Em busca de Judith”.

'Esta exclusão é uma espécie de herança'
A direção de movimento de 'Hereditária' é assinada pelo performer, ator e professor da UFBA, Edu O. Ele parte da diversidade de potências de cada corpo para compor gestos e movimentos cênicos. Edu, primeiro professor de dança cadeirante de uma universidade pública brasileira, é uma referência no debate sobre a deficiência nas artes, e traz sua reflexão a respeito do capacitismo, ou “bipedismo compulsório” para a criação do espetáculo.
O capacitismo é um conjunto de ações preconceituosas e a discriminação contra pessoas com deficiência, que se baseia na ideia de que elas são incapazes ou inferiores - uma realidade social bastante grave que afeta milhões de pessoas.
Um levantamento do Ministério da Saúde revela que o Brasil possui, atualmente, 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, representando 23,9% da população. Destas, quase 70% não concluíram o ensino fundamental e apenas 1% estão no mercado de trabalho.

“Esta exclusão é uma espécie de herança: de desigualdades ancestrais, de preconceitos enraizados e solidificados em oportunidades que se abrem para alguns e fecham para outros. O projeto Hereditária nasce de um desejo de explorar, de forma criativa, poética, mas também política e lúcida, as diferentes dimensões das heranças que atravessam a vida do indivíduo com deficiência, e da sociedade como um todo”, explica a idealizadora do espetáculo.

Moira comenta ainda que existem boas políticas públicas para pessoas com deficiência, como o percentual mínimo de PCDs em produções artísticas, mas ela alerta sobre a falta de informação da população em geral.

“O que precisamos agora é a ampliação do acesso à informação. Me choca a falta de conhecimento sobre o que estamos fazendo, o que é uma audiodescrição, como faz, porque é necessária. A gente precisa falar muito sobre isso. Precisamos que os patrocinadores se interessem, que o público queira conhecer”, afirma.

Serviço
Hereditária 
Data: Segundas e terças-feiras, até 22 de outubro
Hora: 19h
Local: Teatro Firjan Sesi (Avenida Graça Aranha, 1, Centro)
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia), na plataforma Sympla ou bilheteria.
Classificação: Livre
Duração: 60 minutos
Todas as apresentações contam com acessibilidade atitudinal ou comunicacional para pessoas com deficiência