João Batista DamascenoDivulgação

Há alguns anos dois turistas alemães foram presos e conduzidos para a Delegacia de Proteção ao Turista, em Salvador (BA), após trocarem a roupa num canto do saguão do aeroporto daquela cidade. Um terceiro, que estava com eles, também foi conduzido coercitivamente, com evidente abuso de autoridade, à delegacia para prestar depoimento. Os três, todos com mais de 60 anos, embarcariam de volta às suas casas na Alemanha, depois do Carnaval, mas foram impedidos em razão da prisão.
Os turistas disseram que não acharam que a troca de roupas incomodaria as pessoas presentes no aeroporto, depois de tudo o que viram no Carnaval pessoalmente e pela TV, nem que se tratava de crime. Apesar do evidente erro quanto à licitude do que fizeram, os dois turistas foram autuados por prática de ato obsceno e somente dias depois puderam viajar. Quem conhece a Alemanha sabe que, com muito menos exibicionismo que no Carnaval brasileiro, é comum encontrar pessoas nuas tomando sol nos parques, sem qualquer atenção dos demais frequentadores. Os turistas alemães até hoje não devem ter entendido qual é a regra de vestimenta ou da falta dela no Brasil.
No Rio de Janeiro, uma banhista que fazia topless na Barra da Tijuca foi presa pela Guarda Municipal, conduzida à delegacia de polícia e igualmente autuada. De novo o que se viu foi abuso de autoridade. Isto porque, além da licitude da prática do topless, a Guarda Municipal – hoje autarquia – era uma empresa pública com seus empregados uniformizados visando, exclusivamente, à proteção do patrimônio público municipal. A Guarda Municipal carioca não era e continua não sendo uma polícia de costumes. Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Isto decorre do princípio da legalidade esculpido na Constituição e os agentes públicos somente podem e devem fazer o que a lei manda.
Na Grécia Antiga, os desportos tinham duas modalidades: hípicos e gímnicos. Nos esportes equestres ou hípicos, os atletas competiam vestidos. Nos desportos gímnicos os atletas competiam nus. O radical da palavra gímnico é o mesmo das palavras ginásio, ginasta, ginástica, ginecologia e está relacionado ao físico ou à atividade física.
Há algum tempo li e não reencontrei a fonte para a devida citação que os gregos competiam nus para exibição do corpo e demonstração da virtude do cuidado com ele. A nudez dos atletas gímnicos compunha um ritual cívico, que também tinha sentido religioso. Na Grécia Antiga, a competição com o corpo nu era motivo de orgulho, pois demonstrava virtudes mentais, coragem e devoção aos objetivos. A vergonha para os antigos gregos não era a nudez, mas o corpo nu sem cuidados que denotava uma pessoa sem educação e sem cultura.
O cuidado físico demonstrava o padrão social do indivíduo e era considerado uma dádiva divina. Os deuses, criadores do mundo e dos jogos, se compraziam com o corpo nu bem cuidado, segundo a concepção daquela sociedade. Os vencedores dos jogos recebiam a coroa de louro como equiparação aos deuses que cultuavam. O corpo belo, em forma, era admirável e representava virtude e bravura. Demostrava o trabalho dos atletas para alcançá-lo. O louro da vitória era um reconhecimento pelo árduo trabalho no “gymnásion” até o alcance do que se considerava perfeição.
A liberdade corporal com a nudez era a expressão da liberdade que os cidadãos gregos tinham; tratava-se de valores que os distinguiam de outras culturas e contribuía para a racionalização da qual emergiu a democracia, pela qual hoje teimamos em resistir para sua realização substancial.
Sobre o comportamento de passistas nuas no Carnaval, uma psicóloga, numa entrevista, disse que se tratava de uma prática libertadora e que todo mundo deveria experimentar alguma vez na vida. A consideração de que a nudez no Carnaval ou em praia, e apenas nessas circunstâncias, se traduz em prática libertadora reflete o moralismo, a naturalização do tabu da indumentária e sério problema com o conceito de liberdade.
O processo de naturalização consiste em nos acostumarmos com criações sociais e as tratarmos como se decorressem da natureza. Andar vestido não é natural, pois na natureza não se usa roupa. Andar vestido é cultural e necessário socialmente, ainda que sob calor de 40 graus. O uso de terno no verão carioca é antinatural e lesivo à saúde, mas demandado em certos meios sociais. Vesti-lo não há de ser considerado opressão. Mas conduta social adequada a meio específico.
Outras práticas sociais não decorrem da natureza, mas da milenar construção da convivência humana. Na natureza não existe direito, nem liberdade. Tudo na natureza é instinto e poder do mais forte. Liberdade é a ausência exterior de limitação e também o direito de fazer e buscar tudo que a outrem não prejudique.
A troca de roupa num saguão de aeroporto, o desfile das passistas nuas, o topless ou nudismo nas praias não haveriam de incomodar quem não o está fazendo, nem ser considerados práticas libertadoras. Tratam-se de condutas compatíveis com o que é natural e adequadas, numa sociedade orientada pela liberdade individual, por não causarem danos a quem quer que seja.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.