De novo. Parece uma confissão de algum ódio, de alguma arrogância sumária contra quem mal nenhum é capaz de fazer.
Basta que eu me aproxime do portão, e ele começa a latir. Um latido que diz que minha presença é desagradável, que minha presença é incomodativa. Já mudei de calçada e, mesmo assim, ele me avisa que não tem apreço por mim. Que seria melhor que eu não aparecesse. Já disfarcei colocando óculos e boné. Já mudei a cor da roupa, sonhando que a implicância não era comigo.
Era. Sei disso, porque fiquei ao longe observando outros passantes. E nada de latidos. Mesmo na calçada onde ele avisa que não gosta de mim. Troquei o perfume. Definitivamente, era o perfume. Errei. O latido sem comedimento persistia.
O latido do cachorro foi dizendo carências em mim. Não é o primeiro desprezo. Sofri tantas vezes por sentir que não me queriam. Na escola, certa vez, errei uma resposta. Estava com os pensamentos em outros cenários. Que mal há? Criança ainda. E errei. E riram, riram até as risadas cansarem.
Disse nada em casa. Pedi para mudar de escola. Perguntaram o motivo. Chorei, apenas. Não queria dizer fragilidades. Disse. Minha mãe aceitou e, prontamente, resolveu o assunto. Na outra escola, também ouvi comentários. Em uma roda, disseram que eu comia de boca aberta. Eu não sei se eu comia de boca aberta. Sofri. Sofri sem dizer. Achei que era preciso prestar atenção.
Em frente à minha casa, morava uma mulher muito elegante e seu filho único. Um dia, fui de chinelo estudar com ele. Ela olhou para os meus pés tantas vezes que tive vontade de abraçar aquela criança sofrida que era eu e dizer que eu não me sentisse como estava me sentindo. Desviei a atenção dos livros para a desatenção daquela senhora. Ofereceu alguma comida, recusei de pronto, fiquei com medo de comer de boca aberta sem perceber. Seria um segundo erro, além do chinelo.
No meu primeiro trabalho, de auxiliar em consultório de dentista, cometi um erro de português, um erro grave, não vou repetir aqui, porque tenho vergonha. E um cliente me corrigiu alto. E pediu que eu repetisse do jeito correto. O dentista ouviu e não disse nada. Era um erro, mas não precisava me expor assim. Quis ir embora, dizer a mim mesmo que as pessoas erram, que o erro seria esquecido. Nunca esqueci.
Outra vez, foi um relógio que comprei com muita dificuldade. Gostei tanto que não tirava do pulso, até que o filho do meu segundo patrão olhou com desdém e comentou que o relógio era estranho demais. Consegui um sorriso para disfarçar o incômodo, e nunca mais usei.
Outra vez... Não. Não vou falar de outra vez, senão terei de ir costurando os rasgos que as pessoas foram fazendo em mim. Ou que eu mesmo fiz. Os humanos são capazes de causar dor horrível nos humanos.
O cachorro que late, quando eu passo, não é humano, não preciso que ninguém me corrija o raciocínio.Quando me arrumo para sair, já fico pensando, "Por que ele não gosta de mim?". Ele, o cachorro. É disso que se trata. É como se o desamor de tantas vezes estivesse representado naquele latido. É como se ele desaprovasse alguma coisa em mim.
Decidi. Vou conversar com ele. Parece estranho, mas vou. Vou dizer, calmamente, que não adianta o latido agressivo, arrogante, que vou continuar passando. Que é ele quem vai desenvolver alguma rouquidão ou cansaço. Que não tem ele o direito de diminuir minha vontade de caminhar. E, talvez, até explique o que as pessoas já fizeram comigo. Sim. É mais fácil que ele compreenda e pare de agir como os outros. Os outros que doeram em mim.
É isso, também errei ao não me aproximar do jeito certo.Vou dar algum carinho. Um carinho devolve o que o medo nos leva.Um carinho escreve futuros em nós, futuros bonitos, esperança.Vou perguntar o nome do cachorro, sabendo o nome fica mais fácil. E vou dizer o meu. E permitir que me conheça. Só assim não nos estranharemos.