João Batista Damasceno, desembargador do TJdivulgação

Num prédio na Avenida Pasteur, em Botafogo, há mais de 30 anos, um porteiro foi além de suas funções e passou a aferir as despesas realizadas pelo síndico. Detectada malversação contou para os moradores o que sabia. Foi pior que atiçar um formigueiro. Os moradores ficaram em polvorosa. O síndico, um militar reformado, era um homem sisudo, que mantinha fixada, desde o Governo Médici, no lado interno do vidro frontal do apartamento, uma bandeira do Brasil, com os dizeres: “Brasil! Ame-o ou deixe-o”. Soberbo e defensor intransigente de valores como Deus, pátria e família sentiu-se humilhado e acuado. O porteiro se tornou prestigiado e pensava ter adquirido estabilidade vitalícia no emprego.
Destituído do cargo de síndico, cultivou o ressentimento contra os vizinhos, mas sobretudo contra o porteiro. O ex-síndico se transformara num capacho e o porteiro numa soberba ambulante. Inverteu-se a hierarquia social. Sem aviso prévio, em certo dia, o ex-síndico descarregou o revólver no porteiro. O homicida era locatário de um pequeno apartamento em Copacabana, para onde fugiu.
Mas descoberto foi levado à delegacia – sem mandado ou prévia intimação – e alguns policiais ficaram no apartamento para investigar existência de outras ilicitudes. Não tendo sido preso em flagrante, prestou depoimento e voltou ao apartamento de Copacabana, onde disse ter constatado a subtração de relógios de luxo e outras joias. Para a imprensa não falou do homicídio que praticara, mas não poupou palavras para denunciar o furto de suas joias. Tampouco quis responder se o apartamento de Copacabana era uma “garçoniere” mantida por tão ferrenho defensor de valores tradicionais. Qualificava a subtração das joias como roubo, porque fora retirado do apartamento e levado para a delegacia sob a mira de armas.
O homicídio deixou de ser o tema abordado pelos jornalistas. Deste já se falara tudo ou quase tudo. O tema das matérias passou a ser o roubo das joias praticado pelos policiais que ficaram no apartamento enquanto outros levaram o homicida para depoimento. O delegado tomou o depoimento do homicida sobre o roubo das joias e instaurou um inquérito policial. Decorridos dois dias, sem que haja testemunha do fato, o homicida foi atropelado por um ônibus e morreu. A morte extingue a punibilidade e portanto o inquérito do homicídio foi arquivado. Outro não foi o destino do inquérito do suposto roubo das joias. Tendo se comprometido a voltar à delegacia com documentos que comprovavam a aquisição das joias, a suposta vítima do crime de roubo não teve tempo suficiente para provar o que dissera e seus familiares nada sabiam da existência delas, assim como também não sabiam da existência da “garçoniere”. Casos encerrados!
Restou a dúvida sobre o “acidente” que vitimou o ex-síndico. Não poucos atropelamentos durante a ditadura empresarial-militar disfarçaram homicídios. Igualmente mortes súbitas de quem não ostentava doenças pré-existentes que as pudesse justificar. A morte dos três líderes da Frente Ampla de oposição ao regime empresarial-militar num lapso de 9 (nove) meses deixa dúvidas sobre as causas das mortes. O ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu num suposto acidente automobilístico no dia 22 de agosto de 1976. O ex-presidente João Goulart faleceu de suposto infarto em 06 de dezembro de 1976. Os militares não permitiram a abertura do caixão para que Jango fosse velado pelos familiares, nem a necrópsia. Carlos Lacerda morreu em 21 de maio de 1977 igualmente de suposto infarto. Em 20 de janeiro de 1977 tomara posse nos EUA o presidente democrata Jimmy Carter. Este presidente estadunidense pôs fim à colaboração dos EUA com os governos militares cujas ditaduras instituíram a Operação Condor e se esforçou para conter abusos aos direitos humanos. Esta mudança poupou a vida de Brizola que seria deportado do Uruguai para ser morto no Brasil, mas foi, por ordem de Jimmy Carter, resgatado pela CIA no dia 20 de setembro de 1977.
Levado para Buenos Aires onde passou a noite em um local seguro da CIA, Brizola foi embarcado em um voo - sem escalas - para Nova Iorque, onde chegou em 22 de setembro, recebeu visto de permanência por seis meses e depois rumou para Portugal onde permaneceu até retornar ao Brasil em 1979. O salvamento da vida de Brizola naquele momento tinha a oposição do subsecretário de Estado para os Assuntos do Hemisfério Ocidental, Terence Todman. Mas a CIA obedeceu a quem tinha que obedecer: ao presidente Jimmy Carter.
Assim como se sabe que o acidente que vitimou “Zuzu Angel” foi um atentado, a queda de Anísio Teixeira no fosso do elevador num prédio na Praia de Botafogo, onde morava Aurélio Buarque de Hollanda, há 44 anos, no dia 11 de março de 1971, pode igualmente ter decorrido de sua forte preocupação com o que se fazia com a educação nacional às vésperas da edição da Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1971.
Há muitos acidentes, mortes súbitas e desaparecimentos de opositores do regime empresarial-militar a serem apurados para constituição da memória de nossa história. Mas não basta verdade e memória. É preciso também justiça. A formação da maioria no STF sobre o não abrangimento dos desaparecimentos de pessoas pela Lei da Anistia é um começo. A destituição das patentes dos sicários das liberdades e a subsequente anulação das pensões para suas filhas “solteiras” ´pode ser a continuidade. O Estado pode anistiar os cidadãos, mas não pode se perdoar ou perdoar seus agentes quando comete crimes.