Stacy foi a vencedora do Slam que aconteceu na FLUPPedro Ivo/ Agência O Dia

Rio - Cria do Complexo da Penha, Zona Norte do Rio, Otávio Júnior, de 39 anos, teve a sua vida transformada aos oito anos, quando encontrou, no campinho de futebol que costumava jogar, o livro infantil "Dom Gatão". Desde então, ele se refugiou na literatura e passou horas a fio lendo nas bibliotecas escolares públicas. No entanto, conforme entendia os processos criativos, ele percebeu que era preciso democratizar a escrita e a leitura dentro das comunidades. O impacto das experências em Otávio trouxe uma longo caminho na literatura, que desembocou na Festa Literária das Periferias (Flup).
Na última semana, os moradores do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, puderam curtir arte, música e literatura na Flup. É a primeira vez do projeto na comunidade e, em sua 12ª edição, ele foi realizado no Centro de Artes da Maré.

O evento, que teve sete dias de duração, reuniu as maiores competições de slams das Américas e contou com uma programação de mesas de debate em homenagem às obras de Lima Barreto, com transmissão dos jogos do Brasil e shows diversos.


Antes, Otávio ter a ideia de criar a primeira biblioteca comunitária no Complexo do Alemão e na Penha ao ver o desinteresse dos amigos na leitura. "Eu trabalho há mais de 15 anos com projetos de incentivo à leitura. Iniciei minha trajetória no Complexo da Penha e Alemão e, como grande apaixonado por livros, não via o mesmo desejo dos meus primos e amigos da mesma faixa etária que eu, ou até mais novos. Então, minha ideia era levar a movimentação do que eu via nas apresentações culturais para a favela", disse. Antes, a biblioteca era itinerante, mas, atualmente, ela está localizada em uma creche dentro do Alemão, em uma salinha de leitura.

Além da biblioteca, o escritor também destacou outro projeto de sua autoria chamado "Ler é 10", criado em 2003 mas oficializado apenas em 2007. "A ideia era viabilizar o acesso à leitura na Penha e no Alemão. Eu percebi que uma forma de trazer as crianças para o universo da leitura era a partir de atividades lúdicas, como contação de histórias e tudo mais, mesclando interatividade" declarou.

Otávio tem o costume de dizer que sua história é de um menino que tinha outros sonhos, ligados ao esporte, mas que foi encantado pela literatura. "O campinho, lugar onde achei o livro que me mudou, era um cenário que eu visualizava um futuro através das minhas práticas esportivas. Como todo menino brasileiro, que sonha em jogar em uma equipe profissional, a influência da arte era muito forte em mim também. Quando a minha chave virou, me vi imerso no universo dos livros e percebi como foi importante para mim essa transformação. Depois, comecei a pensar em ações para promover a leitura em regiões periféricas, justamente porque eu vi o benefício na minha vida". 
Para além das batalhas poéticas, a Flup também recebeu grandes escritoras como Conceição Evaristo e a haitiana Yanick Lahens, a poeta Luna Vitrolira, além de Geovani Martins e Jessé Andarilho e o pernambucano Marcelino Freire. De acordo com um dos fundadores da Flup, Júlio Ludemir, o festival está se tornando cada vez mais multimídia, no entanto, a sua base segue sendo a literatura.
"Faz parte do racismo/classicismo patriarcal colonialista brasileiro que a gente estranhe ao fazer algo na Maré ou em qualquer outra favela do Rio ou Brasil. É como se a cultura fosse um monopólio das classes superiores", disse Júlio. "Quando você aposta em eventos culturais em Paris, por exemplo, em uma região central, você está levando em consideração um sistema de transporte eficaz, o que não é o caso de quem mora na Maré, Zona Oeste, Realengo ou Cidade de Deus. Então, quando se diz que não vai fazer dentro de espaços populares, você está praticamente declarando qual é o público que deseja atingir. Na verdade, quando se escolhe lugares ou a programação desses tipos de eventos, automaticamente é escolhido o tipo de público também", completou.

As batalhas de slam são competições de poesia, realizadas no espaço público, em roda e de forma gratuita. Apesar da existência de diversos tipos de formatos, o objetivo é, em geral, declarar poemas de autoria própria da pessoa que recita. Nesta edição da Flup, a atividade foi um dos principais eventos, contando com artistas do ensino médio de escolas públicas da Maré.
A vencedora da batalha de rimas, Stacy, não escondeu a emoção. "O Slam para mim foi o começo de uma trajetória. Antes de conhecê-lo, eu não sabia por onde começar a batalhar por esse sonho de mostrar o meu trabalho e fazer a diferença para alguém. Até que um dos organizadores desse evento de batalha e meu professor, me incentivou e acreditou em mim quando eu mesma não acreditava, por isso devo tudo a ele", disse. Ela trabalhou por dois meses para se apresentar este ano com o objetivo de tocar as pessoas com suas poesias. "Eu nem imaginava ganhar o Slam colegial. Hoje me sinto realizada e creio que minhas palavras farão história", finalizou.

"O ambiente popular da Maré, das favelas, é cultural e tem sido também o lugar das ações afirmativas. Existe algo que está mudando neste país e que passa para essa juventude escolarizada. A gente encontrou muitos poetas no ensino médio das escolas públicas da Maré. Precisamos dar destaque a isso, o mundo precisa ver o talento deles", acrescentou Júlio. "A lógica que a Flup segue é oferecer rede para esses jovens para que possam operar e circular nas cidades. É o debate do território, não tem ônibus, não tem metrô na Cidade de Deus que os leve até o Teatro Municipal, por exemplo. Acredito que a arte influencia, o livro não vai ser esquecido, assim como um filme. Há conteúdos que não são apagados da nossa cabeça, por isso fazemos essa troca", concluiu.
Sobre os investimentos, Júlio afirmou que há dificuldade em conseguir parcerias e, que muita das vezes, precisa negociar coisas pequenas, como passagem de avião para trazer os escritores. "Temos dificuldades extraordinárias de investimento. Eu tenho que procurar novos parceiros e novas pessoas para ajudar nas compras. Por exemplo, eu trouxe um poeta mexicano indígena e, para pagar a passagem e hospedagem desse artista, eu tive que negociar porque eu não tenho dinheiro suficiente para arcar com o festival todo. A gente faz de tudo para oferecer um produto de qualidade. Não quero chegar na favela dando qualquer coisa. O nosso festival é parrudo, com atividades das 18h até à 1h. Quem quis conhecer grandes escritores acreanos, haitianos, franceses, entre outros, foram lá na Maré, no Festival. Tudo isso foi feito com muita dedicação".
Para o museólogo e membro do Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão, Thainã de Medeiros, de 39 anos, os eventos culturais em favelas acontecem desde sempre. "A comunidade inventa e reinventa formas de acontecimentos culturais. Eu arrisco dizer que não existe nada da cultura carioca que não passe na favela, não tem um elemento que a gente consiga citar que não passe na comunidade. Até mesmo a bossa nova, que mistura jazz com samba. Pode ver, todo fim de semana tem uma festividade diferente na favela, seja uma simples reunião que fecha a rua para assistir futebol até um evento literário, como a própria Flup e a Perifacon, que acontece em São Paulo".

Thainã ressaltou ainda que as festas nas favelas são mais democráticas, como o baile funk, que não precisa pagar nada, diferente de outros tipos de eventos que não acontecem nas comunidades. "O maior baile funk do Rio é o da gaiola e não precisa pagar nada para ir. No entanto, se você faz essa versão de festa fora da favela, é necessário pagar. Onde está a democracia nisso? Há muitos movimentos literários dentro das favelas, mas eles são pouco reconhecidos. Seja uma biblioteca comunitária que alguém fez, uma simples arrecadação de livro para distribuir ou escritores maravilhosos. O próprio livro na favela é um elemento de distinção. Tenho amigos que colocam livros dentro de casa para que a polícia, quando invadir, veja que ali mora um estudante", finalizou.

Posto da Polícia Militar vira biblioteca

Nascido e criado na favela de Antares, em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio, Jessé da Silva Dantas, 41, nunca foi muito interessado por literatura, até ler seu primeiro livro aos 24 anos, um romance chamado "No Coração do Comando". De tanto que gostou, ele leu de uma vez em um dia. A partir disso, Jessé passou a comprar outros livros, principalmente aqueles que abordavam o cotidiano da favela.

A paixão pela leitura passou também para a escrita. O jeito de Jessé contar histórias era diferente do tradicional, fazendo-o ficar conhecido como autor marginal, por causa da literatura marginal. Por causa de seu estilo literário, passou a ser convidado para alguns eventos culturais também, até que em 2014 criou um projeto chamado "Marginow", com o objetivo de dar visibilidade a artistas marginalizados.

Em 2019, quando estava gravando um filme sobre o assunto, ele foi informado pelos moradores da comunidade que um posto policial havia sido desativado. Foi então que surgiu a ideia de montar uma biblioteca no local. "Quando terminamos a filmagem, eu fui falar com a associação de moradores, depois conselho de segurança da região, fui até o batalhão, prefeito, governador, perguntei para todo mundo se eu poderia usar o espaço como um espaço cultural, uma biblioteca. Como ninguém disse que não, eu decidi dar prosseguimento e assim surgiu o primeiro centro cultural de Antares", informou.

Jessé não concordava com o fato do Brasil ser conhecido por ser um país de pessoas que não leem, então, passou a criar ações de militância para incentivar a leitura. "Muita das vezes é falta de acesso a livros e não falta de interesse. Esse desafio de pegar um posto policial, voltado para a segurança, para fazer a paz com armas de fogo, me motivou muito. O lugar agora é um ambiente de cultura, de paz feita com livros, arte, dança e filme".

O escritor contou que a sua maior felicidade foi ouvir uma mãe, ao brigar com a sua filha, falar que o castigo seria não deixá-la ir a biblioteca. "Quando eu ouvi isso fiquei surpreso. Antigamente, o meu castigo era justamente ir para a biblioteca, mas hoje não. Aquele foi o dia mais importante para mim porque eu vi que o projeto estava alcançando as pessoas".

Diversas atividades são organizadas no espaço, como sarau, batalha de rima, contação de histórias, apresentações e, no período de natal, a visita do Papai Noel. Tudo é feito com a ajuda dos moradores.