Aos 23 anos, Cara de Cavalo foi morto por integrantes da Scuderie Le CocqDivulgação

Rio - Na madrugada do dia 3 de outubro de 1964, Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, de 23 anos, foi assassinado por policiais com 61 tiros dentro de uma casa, em Búzios, na Região dos Lagos. Considerado o bandido mais procurado do Rio à época, ele foi executado por vingança pela morte do detetive Milton Le Cocq. O caso, que entrou para a história por ser o embrião da Scuderie Le Cocq, como ficou conhecido o primeiro grupo de extermínio do Brasil, é retratado no filme "Com as Próprias Mãos", que estreia nesta sexta-feira (7), às 21h15, no Canal Curta. A obra tem como um dos "protagonistas" o premiado repórter do DIA, Luarlindo Ernesto, de 80 anos, ícone da imprensa carioca.
À época com 21 anos, Luarlindo cobriu os dois crimes pelo extinto jornal "Última Hora" e testemunhou o momento da morte do bandido, a quem havia sido atribuída, cinco semanas antes, a autoria dos tiros em Le Cocq. O repórter também acompanhou o desenrolar das atividades da Scuderie, tida por alguns pesquisadores como a origem das atuais milícias.
"O Cara de Cavalo entrava em um táxi, pegava uma mulher na zona de meretrício e passava pela Avenida 28 de Setembro, em Vila Isabel, assaltando apontadores do jogo do bicho. Como esses assaltos se tornaram corriqueiros, o banqueiro Cuia, responsável pela contravenção da região, foi denunciar o caso para policiais civis. Então, quatro agentes, incluindo o detetive Milton Le Cocq, ficaram esperando o táxi do Cara de Cavalo aparecer. Quando os policiais identificaram o carro, o Fusca da polícia foi atrás. Algum dos agentes começou a atirar no táxi e acabou acertando as costas do Le Cocq, que estava dirigindo. O [Manoel Moreira] não atirou em ninguém e fugiu", relembra Luarlindo.
Jurado de morte, Manoel Moreira começou a se refugiar em comunidades, enquanto os veículos da época estampavam diariamente sua foto, noticiando a "caçada". "Os jornais colocavam ele como um 'famigerado bandido'", conta Luarlindo.
Com a Ditadura Militar, a imprensa tinha que seguir ordens superiores e produzia matérias baseadas apenas nas versões policiais. Diretor do filme, José Francisco Tapajós avalia que o Jornalismo foi responsável por tornar Cara de Cavalo o "criminoso mais procurado do país".  
"O filme não fala só da atuação policial, mas também do papel da imprensa. O Cara de Cavalo foi colocado naquele lugar por conta da participação dos veículos, que ajudaram a criar uma história de que ele era um bandido perigosíssimo. Com o longa, nosso objetivo foi mostrar o papel da imprensa, o surgimento da violência urbana no Rio e a relação do repórter com os casos policiais", diz o diretor.
A "ficha" de Cara de Cavalo também é citada no livro "Cidade Partida", de Zuenir Ventura, lançado em 1994. "Pouco trabalho, muitas mulheres e um dinheiro certo, sem risco. Sua fama era grande entre policiais e malandros, mas seu poder não passava da Central do Brasil. Jamais tomou uma condução que o levasse à Zona Sul. Ficava pela região de Maracanã e Vila Isabel e, no máximo, se aventurava por Andaraí, Tijuca e Grajaú. Iniciara garoto no comércio ilícito de maconha na Central", registra a publicação. 
Sete mil associados

O filme relembra a figura do delegado e ex-deputado José Guilherme Godinho Ferreira (1930-2021), o Sivuca, um dos criadores da Scuderie e autor do slogan "bandido bom é bandido morto", que depois passou a ser muito usado em propagandas eleitorais. O grupo chegou a contar com 7 mil associados e só foi extinto no início dos anos 2000, por ordem judicial. A organização tinha como símbolo uma caveira com duas tíbias - imagem similar a que é usada pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope).

A historiadora Mariana Dias, que participa da produção, faz um paralelo entre o grupo e a violência atual. "A Scuderie Detetive Le Cocq surge com finalidades 'filantrópicas', para amparar a esposa de Milton Le Cocq. No entanto, há indícios que muitos de seus membros faziam parte do famigerado 'Esquadrão da Morte', uma espécie de marca que se perenizou na imprensa e na boca da população, tendo suas práticas bem aceitas pela sociedade. Podemos dizer que há uma influência da Scuderie nas atuais milícias, embora sejam outros tempos. Entre elas, mas de forma cautelosa, podemos apontar como similaridades o envolvimento de grupos paramilitares, a proteção de determinados indivíduos em detrimento de outros e execuções de pessoas indesejáveis", opina. 
Sobre o papel midiático na cobertura do caso, nos anos 1960, Mariana avalia que os veículos foram oportunistas. "A imprensa soube aproveitar a atuação destes grupos para tornar seus exemplares mais vendáveis e o cenário político-administrativo não via tais atuações do grupo como algo ruim. Cara de Cavalo era considerado um ladrão de baixa patente e os rumores de que ele tinha sido usado para acobertar o disparo acidental em Le Cocq, vindo do banco traseiro do Fusca, são fortíssimos. Porém, ao ser o 'autor da morte de Le Cocq', a imprensa focou em sua caçada, dando a ele uma grande projeção de um bandido extremamente perigoso e passível de ser morto", afirma a pesquisadora.
O longa-metragem documental é conduzido por dois profissionais, que mostram o contraponto entre formas de fazer jornalismo em épocas diferentes. De um lado, Luarlindo Ernesto, do outro, a jovem Yasmin Santos, que traz um olhar de dentro dos espaços periféricos para o papel da imprensa, denunciando a vulnerabilidade da população negra e o descaso das autoridades.

O filme mostra, ainda, a influência do episódio na trajetória do artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980), que retratou Cara de Cavalo numa de suas mais célebres obras. Outro momento de destaque é o depoimento do cineasta Neville D'Almeida.
'Queremos exclusividade'

Após semanas de buscas, Manoel Moreira foi assassinado em uma casa em Búzios, que na ocasião fazia parte do território de Cabo Frio. O imóvel era de uma amiga da mulher do bandido. "O 'Última Hora' conhecia uma mulher da polícia feminina, que topou trabalhar na casa dos pais do [Manoel]. Depois de duas semanas, ela conseguiu interceptar uma carta do Cara de Cavalo, que dizia onde ele estava. Nós, então, procuramos um grupo de policiais e falamos: 'Sabemos a localização do [Manoel], vamos acompanhar vocês, mas queremos exclusividade'", relembra Luarlindo.

Naquela madrugada de 3 de outubro, o repórter e um fotógrafo do jornal acompanharam a incursão. Dos mais de 100 tiros disparados, 61 acertaram o bandido, sendo apenas um na cabeça para não dificultar o reconhecimento, de acordo com relatos. "A gente queria achar o Cara de Cavalo para ele se defender e dar a versão dele. Nossa intenção não era que ele fosse executado, em hipótese alguma", completa Luarlindo Ernesto.
*Reportagem do estagiário Leonardo Marchetti, sob supervisão de Raphael Perucci