Rio - O julgamento de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, assassinos confessos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes começou por volta de 10h30 com o depoimento de Fernanda Chaves, ex-assessora da vereadora e sobrevivente do atentado. No tribunal, ela relembrou o dia do crime e detalhou o impacto que ele teve em sua vida: precisou deixar o Brasil, sua filha abandonou os estudos e o marido fechou o escritório. A oitiva ocorreu por vídeo conferência, sem a presença dos réus.
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Fernanda contou que, na noite de 14 de março de 2018, ela e Marielle deixaram um encontro na Casa das Pretas, na Lapa, por volta das 21h, e seguiam para casa. Ambas estavam no banco de trás do carro dirigido por Anderson. Enquanto olhavam o celular, ouviram uma sequência de tiros, e Fernanda teve o reflexo de se abaixar.
A jornalista relatou que, após os disparos, percebeu que Anderson havia esboçado um sinal de dor, em voz baixa, antes de seu braço cair do volante. Nesse momento, segundo Fernanda, Marielle já estava imóvel, e o peso do corpo dela a pressionava. Em seguida, a jornalista se esticou, segurou o volante de Anderson e puxou o freio de mão, parando o carro enquanto permanecia abaixada para se proteger.
"Desci do carro engatinhando, acreditando que tinha acontecido um confronto entre bandidos e policiais atrás, mas não vi nada. Levantei com as mãos para cima. Estava ensanguentada, com pedaços de vidro, e comecei a pedir ajuda. Essas lembranças ainda são muito difíceis e confusas, porque eu não enxergava direito, não sabia se tinha sido atingida ou não. Eu olhava para a Marielle e não queria admitir que ela pudesse estar morta”, relatou Fernanda.
Dois dias após o crime, Fernanda e sua família deixaram o Rio e foram para Brasília, onde aguardaram os trâmites do programa de proteção da Anistia Internacional. Depois, ficaram três meses em Madrid, um período que, segundo Fernanda, serviu para repensar como viveriam dali em diante.
A assessora lembrou o momento em que entrou no avião para deixar o Brasil com sua família, quando sua filha pequena começou a fazer questionamentos. “Parecia que a gente estava fugindo. Quando entramos no avião, minha filha perguntou: ‘mamãe, o que é assassinato?’ Ela desconhecia o significado”, contou.
No primeiro momento, Fernanda evitou falar sobre o que havia acontecido. “Ela não entendia por que precisávamos fugir, se sentia em perigo, e nossa preocupação era garantir que ela se sentisse protegida ao nosso lado.” Segundo Fernanda, essa situação ainda tem impacto na vida da família. “Mudamos ela de escola recentemente e não sabíamos se deveríamos levar o caso para a escola.”
Ela conta que precisou retornar ao Rio para a reconstituição do crime, mas a Anistia alegou que não poderia sustentar a família por três meses, já que o dinheiro foi usado para a viagem ao Brasil. Seu marido precisou buscar ajuda financeira com amigos e familiares para que conseguissem se manter.
"Não tinha como vivenciar a normalidade depois desse episódio bárbaro. Foi muito doloroso para mim, porque é muito violento ser obrigada a sair da sua cidade, do seu país. Mas foi ainda mais doloroso não poder participar dos ritos de despedida da Marielle. Eu fui impedida, não foi uma escolha minha”, desabafou Fernanda. Marielle e Fernanda eram amigas há 15 anos, e a vereadora era madrinha de sua filha.
Ao relembrar de Marielle, a jornalista descreve a dificuldade em resumir quem ela era. “É difícil descrever Marielle, ela era muita coisa, muito grande. Marielle queria viver intensamente, experimentar tudo o que fosse possível", disse. Segundo Fernanda, a parlamentar sempre foi uma pessoa determinada, capaz de ser o que quisesse, apesar das barreiras que o mundo impõe, especialmente a mulheres negras e LGBTQIA+.
Para Fernanda, aqueles que tentaram interromper a trajetória de Marielle não conseguiram. “Tiraram da gente, mas não conseguiram interromper o que Marielle representa. Vão ter que conviver com ela estampada em muros, com o que ela representa”, afirma.
Na oitiva, a assessora lembrou que Marielle foi a quinta vereadora mais votada em sua primeira eleição, em 2016, e disse que, apesar de não ser popular em toda a cidade, a parlamentar era bastante conhecida nos meios em que atuava, como o de defesa da moradia. "Não era uma mulher muito conhecida do Rio, mas era conhecida em alguns nichos, algumas atuações, ela teve 46 mil votos em uma primeira eleição, ninguém faz 46 mil votos à toa. Ela não era muito conhecida, mas já começava a galgar esse reconhecimento", afirmou e também confirmou à acusação que ela atuava no combate às milícias e invasão de terras, desde antes do mandato.
Ainda segundo Fernanda, a vereadora tinha preocupação com a segurança dela e de seus assessores, mas não temia sofrer um atentado e estava atenta às ameaças que outros parlamentares do partido vinham recebendo, como a vereadora de Niterói, Taliria Petrone (PSOL), e o deputado federal,Jean Willys (PT).
Por fim, a defesa de Ronnie Lessa questionou sobre as primeiras pessoas que chegaram à cena do crime. Já a defesa de Élcio de Queiroz e o júri optaram por não fazer perguntas. O depoimento de Fernanda durou cerca de 1h30. A próxima testemunha a ser ouvida será Marinete Silva, mãe de Marielle Franco.
No júri popular, os ex-PMs serão julgados pelo duplo homicídio triplamente qualificado, por motivo torpe, emboscada e recurso que dificultou a defesa da vítima, e pela tentativa de homicídio contra Fernanda. Durante os dias de julgamento, os jurados ficam incomunicáveis e dormem em dependências restritas TJRJ. Para o Tribunal do Júri, foram selecionadas 21 pessoas comuns. Deste grupo, sete homens foram sorteados na hora para compor, de fato, o júri. Lessa é apontado como autor dos disparos e Élcio o responsável por dirigir o veículo utilizado na emboscada.
De acordo com o assassino confesso, o crime teria sido encomendado pelos irmãos Brazão, que buscavam enfraquecer a atuação da vereadora contra loteamentos clandestinos na Zona Oeste, onde tinham interesses econômicos. Domingos e Chiquinho Brazão estão presos desde o fim de março após uma operação da Polícia Federal. Eles respondem pelos crimes de homicídio e organização criminosa e permanecem detidos por ordem do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF).
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