O advogado Daneil Blanck diz que não existe legislação específica no Brasil para o temaArquivo pessoal

Quem quer ter filhos e não possui recursos para uma inseminação artificial com toda a segurança muitas vezes opta por um meio que nem sempre tem bons resultados, mas é mais barato, mais arriscado e na hora de conseguir a certidão de nascimento uma dor de cabeça. A inseminação caseira, que não é considerada ilegal e não tem regulamentação, consiste em colocar o sêmen de um doador numa seringa e inserir na vagina da mulher, sem a presença de nenhum profissional de saúde, o que pode ser preocupante.Alguns casais heterossexuais até recorrem ao método natural, mas as mulheres homoafetivas não. De acordo com o médico Paulo Portela, gerente da ginecologia e obstetrícia da Rede Hospital Casa, o perigo de doenças é grande. "Os maiores riscos da inseminação caseira, sem dúvida, são o de contrair infecções sexualmente transmissíveis pelo doador", diz ele.
As redes sociais são prova de que essa é uma prática utilizada por muitas pessoas para ter filhos. Centenas de grupos de inseminação caseira no facebook, nos quais homens dão as suas características e mulheres escolhem os ‘seus pares’ para conseguir o bebê tão sonhado, proliferam a cada dia. Esse foi o caso de Joana Santos e sua companheira, Erika Duarte, atualmente separadas, que tem a filha Mel, de 8 anos.
Mãe socioafetiva (a que não gerou) conta que ela e a esposa se casaram em 2013 e dois anos depois resolveram ter um filho. Como não tinham dinheiro para uma inseminação artificial, resolveram fazer a caseira, mas tomaram todo o cuidado para que o doador não tivesse nenhum contato com a menina, além de exigirem todos os exames laboratoriais. "Escolhemos um rapaz de 24 anos num grupo de facebook chamado Inseminação Caseira e fizemos o procedimento num motel na Avenida Brasil por ser um lugar neutro", diz Joana, que nunca se viu mãe, mas hoje não pensa em sua vida sem a filha. "Ela é o meu coração fora do peito. É uma menina amorosa, minha alegria".
Para Joana, o problema maior é na hora de pegar a certidão de nascimento da criança. "É muito constrangimento. Depois de um ano e quatro meses de muita luta eu fui no cartório e queriam me dar uma certidão de inteiro teor com quase três páginas porque disseram que o nome da minha esposa era muito grande. Um absurdo. Reclamei muito e disse que eu voltaria no juiz. Três dias depois me deram a certidão da minha filha igual a das outras pessoas", conta Joana, que até pensou em ter outro filho do mesmo modo, mas não quer passar novamente pela situação.
Ela diz que sua filha nunca sofreu preconceito por ter duas mães e afirma que fez questão de ter o seu nome na certidão para que tivesse todos os direitos da mãe que gerou. "Como essa técnica não tem respaldo legal, muita mãe biológica bota o filho debaixo do braço, vai embora e acabou. Imagina se eu não tivesse registrado, como seria? Agora estou tendo um atrito e posso brigar na justiça porque não tem diferença da mãe biológica e a mãe socioafetiva'', diz ela, que foi precavida.
"No registro não tem essa diferença. A filiação é no nome das duas. Eu tenho esse direito de entrar na justiça por uma guarda compartilhada, Mas quem não registra, senta e chora, fica a ver navios. Tenho uma amiga que sofreu muito com a situação. Na cabeça dos parentes dela, por mais que você tenha um registro todo bonitinho, a família sempre apoia a mãe que gerou. Ela pode ser a pior mãe d mundo, mas como gerou, acham que tem mais direito que todo mundo", desabafa.
Especialista em Direito de Família, a advogada Marisa Gaudio foi a responsável por acompanhar o caso de Joana. "Quando se pleiteia a maternidade socioafetiva no judiciário em razão de uma inseminação caseira é mais complicado porque foge aos parâmetros regulamentares por não envolver clínica. Há preocupação do sistema jurídico em se estar diante de um pai se esquivando da responsabilidade parental. É importante verificar a boa fé das pessoas envolvidas. Num contrato com a clínica de fertilização existe regulamentação, mas no caso da inseminação caseira não. E se o homem quiser ainda pode posteriormente reivindicar a paternidade", diz a profissional.
De acordo com a advogada, o judiciário precisa acompanhar as novas configurações familiares e diferentes técnicas de reprodução existem e podem ser escolhidas por um casal, de acordo com suas convicções pessoais e mesmo pela situação socioeconômica.
Muita oferta e procura nas redes sociais

Nos grupos de facebook o que mais se vê são homens se oferecendo para mulheres que querem ter filhos. E é claro que ninguém sabe se são pessoas verdadeiras ou aquelas grandes balelas que têm na Internet. Num deles, com mais de 33 mil pessoas, Ronaldo Cabral (será que é esse mesmo o nome?) diz que é "doador método tradicional, 54 anos, da Tijuca, Rio de Janeiro, ótima genética. Não cobro nada. Tenho 3 filhos pra quem tiver interesse mande seu contato nos comentários".
No grupo IC - inseminação caseira ou natural - Tentantes e doadores - Santa Catarina, rapazes se oferecem, mas preferem manter o anonimato nas redes sociais. "Tenho 27 anos, 1.80, branco, cabelo claro, olhos azuis, boa alimentação e ativo fisicamente, exames em dia". Já Felipe Veríssimo, que está no grupo de Santa Catarina, é doador ( Sorocaba interior de SP ), de 28 anos, com 1.72 de altura, olhos castanhos se coloca à disposição. Ele fala porque resolveu ser doador. "Bom eu quero doar somente para uma mulher e com vários requisitos a serem cumpridos, com uma boa estrutura financeira para criar. Mas o principal motivo é que eu sou homossexual e entendo o sonho de mulheres lésbicas quererem ter uma família, então o público alvo que quero doar são para elas", afirma.
Assim como os homens se oferecem, muitas mulheres também entram na rede social e colocam posts perguntando se existem doadores de um jeito ou de outro, com quais características e em qual estado moram. O assunto gera polêmica e muita gente se choca. Esses são alguns dos comentários sobre o tema após alguns internautas assistirem vídeos no youtubea respeito de inseminação caseira: "tráfico humano em público, é o fim mesmo". "Que pessoas doentes, imagina a quantidade de doenças que rola solta nessas paradas. O ser humano não tem mais salvação. "Abri o vídeo achando q seria uma bizarrice engraçada, mas é algo patético, chocante e muito triste. Como pode alguém ter esse nível de desespero? me deu muita pena".
Youtuber ficou chocado

O aparecimento de tantos grupos na Internet chamou a atenção do técnico de radiologia e youtuber André Santos, que ficou intrigado com diversas conversas no grupo e já publicou vídeo no seu canal do youtube, Mistérios Fora do Sistema, sobre o assunto (https://youtu.be/ZY8NTuIo3F0 ). "Vi vários grupos públicos a respeito de inseminação caseira no Facebook. Pensei que se tratava de memes da internet, mas, ao entrar nesses grupos para averiguar do que realmente se tratava, fiquei horrorizado. São grupos com mais de 45 mil membros, onde mulheres procuram homens aleatórios pedindo para que eles a inseminem. Têm vários homens colocando seus perfis, com suas características se oferecendo como doadores. Muitos dessas inseminações acontecem com atos sexuais entre os doadores e as tentantes", disse André.
Segundo o médico Paulo Portela, a prática não é ilegal e é uma alternativa mais barata para alguns casais. "Como não há nenhuma proibição jurídica e nenhum respaldo jurídico, pode haver implicações. Por não ter regulamentação, as crianças nascidas por inseminação caseira terão que ter uma autorização judicial para fazer o registro do bebê em nome das duas mães, pois a demora nesse processo poderá ter repercussões para uma assistência médica ao bebê caso precise".

Sem competência para fiscalizar

Em entrevista ao jornal O DIA, os advogados Daniel Blanck e Pedro Pontes, especialistas em direito de Família, falam sobre o assunto.
O DIA: Parece que a prática de inseminação caseira não é ilegal, mas teria algum órgão para fiscalizar?
Daniel Blanck: A inseminação caseira, por ser realizada de forma independente e sem supervisão médica, não está regulamentada por legislação específica no Brasil. A vigilância sanitária e a Anvisa não têm competência sobre procedimentos realizados fora de serviços de saúde, sendo o controle sobre o material genético e os riscos associados inexistente em ambientes domésticos. A Constituição Federal, no artigo 199, § 4º, proíbe a comercialização de partes do corpo humano, incluindo o esperma, reforçando que a doação deve ser voluntária e altruísta.
Pedro Pontes: É um tema complexo, uma vez que não está previsto em nossa legislação, e, por outro lado, também não existe impedimento legal, logo, não há proibição. Portanto, não há órgão que fiscalize de forma específica a inseminação caseira.

O DIA: Algumas mulheres acabam por pedir pensão para o doador. Isso procede?
Daniel Blanck: Sim, há casos em que mulheres recorrem à Justiça para solicitar pensão alimentícia ao doador de sêmen. No Brasil, os direitos da criança prevalecem, conforme o artigo 227 da Constituição Federal, que garante proteção integral à criança e ao adolescente, e o artigo 1.694 do Código Civil, que estabelece a obrigação de alimentos entre parentes. Mesmo que haja acordo entre as partes, a Justiça pode decidir pela obrigação do pagamento de pensão, pois não existe renúncia a direitos indisponíveis.
Pedro Pontes: Justamente por não haver previsão legal acerca do tema, não há uma resposta certa para essa pergunta. Aqui no Brasil, a doação de material genético deve ser anônima e gratuita, logo, no meu entendimento, não há margem para isso. Na Inglaterra, país em que o assunto é regulado, um homem doador de esperma foi condenado a prover alimentos para duas crianças que nasceram através da sua doação.

O DIA: Em caso positivo, o que pode ser feito para evitar o procedimento. Um acordo assinado teria valor?
Daniel Blanck: Para evitar disputas, acordos assinados são frequentemente utilizados, mas sua eficácia é limitada, uma vez que direitos indisponíveis, como o reconhecimento da paternidade e a obrigação de prestar alimentos, não podem ser renunciados. O ideal, do ponto de vista jurídico, seria realizar a inseminação por meio de clínicas especializadas, com respaldo técnico e anonimato garantido. A Resolução nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamenta as técnicas de reprodução assistida, prevendo o anonimato do doador e proibindo a comercialização de material biológico.
Pedro Pontes: Esse acordo, por si só, não seria capaz de produzir efeitos jurídicos. Não obstante, poderia servir como meio de prova em eventual ação judicial. Em um caso parecido, julgado pelo TJSP, o juízo reconheceu a dupla maternidade de um bebê gerado por inseminação caseira, levando em conta uma escritura pública firmada pelo doador de sêmen, em que este afirmava a ausência de envolvimento emocional com a criança e com o casal de mulheres receptoras.

Margem para coisas ilícitas

Se a inseminação caseira não é ilegal, a venda de órgãos, de sêmens e de bebês é considerado crime. Uma das grandes preocupações de quem vê esses grupos de facebook disseminados nas redes sociais é essa. Até que ponto, homens não entram para serem vendedores em vez de doadores de sêmen? E muitas mulheres também querem pedir pensão para os doadores e até pior, fazem para vender os bebês depois. Em um dos grupos, uma mulher diz que usa a prática para depois vender os bebês como o youtuber André Santos denuncia no seu canal Mistérios Fora do Sistema. (https://youtu.be/WuEbOXqIzEU) 
O advogado Daniel Blanck fala a respeito. "A venda de bebês configura tráfico de pessoas e é crime previsto nos artigo 238 e 239 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O 238 é mais para a venda de crianças , que penaliza quem "promete ou efetua a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante recompensa ou promessa de recompensa e o 239 sobre o tráfico de menores. A denúncia pode ser feita à polícia, ao Ministério Público ou por meio de canais como o Disque 100, que recebe denúncias de violações de direitos humanos". Da mesma opinião compartilha o advogado Pedro Pontes: "Essa conduta é criminosa e está prevista no artigo 238 do ECA. Quem tiver conhecimento dessa prática, deve acionar a Polícia ou a Defensoria Pública".
De acordo com a assessoria de imprensa do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, "Não há registros relacionados a venda de bebês no canal de denúncia Disque 100". A assessoria do Instituto de Segurança Pública afirma: "Infelizmente, não possuímos dados para esse delito".