A queda do ex-ministro Ricardo Salles é apenas mais um episódio da novela ambiental que ainda terá muitos capítulos pela frente e ninguém sabe como terminará
NUNO27JUN - ARTE KIKO
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Por Nuno Vasconcellos
A maior curiosidade em torno da queda do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que "pediu para sair" na última quarta-feira, pode ser resumida numa pergunta simples e direta: como ele conseguiu resistir tanto tempo no cargo? Titular de uma pasta complexa, que tem sob sua responsabilidade tanto a preservação da Amazônia e do Cerrado quanto das florestas urbanas do Rio de Janeiro; que cuida dos mananciais, da fauna, da flora e, em última instância, da qualidade do ar que se respira nas grandes cidades, Salles vinha sobrevivendo a um bombardeio intenso desde o dia 22 de abril do ano passado.
Naquela data, para quem não se recorda, foi realizada uma reunião ministerial que, a princípio, deveria tratar das medidas emergenciais destinadas ao enfrentamento da pandemia da covid-19. O encontro, no entanto, ganhou notoriedade por razões de outra natureza. A primeira delas foi a de ter sido o estopim para a demissão do ex-juiz Sérgio Moro do Ministério da Justiça. A outra foi a frase dita por Salles e que passaria a ser citada toda vez que o nome do ministro fosse mencionado dali em diante.
O ministro do Meio Ambiente sugeriu que o governo aproveitasse a boa vontade que o Congresso vinha demonstrando para aprovar o auxílio emergencial à população mais vulnerável para fazer "passar a boiada". Ou seja, para incluir entre aquelas providências, com as quais todos concordavam, medidas polêmicas da agenda ambiental, que enfrentariam forte oposição se tivessem que tramitar por sua própria conta.
Não há nada de original na ideia — a não ser o fato de um ministro de Estado, por excesso de coragem ou por falta de tato, ter recomendado o uso desse "jeitinho brasileiro" num evento oficial, registrado em vídeo e diante de todo o primeiro escalão do Governo Federal. Fora isso, nada de novo. A prática é antiga e foi utilizada por todos os governos anteriores ao do presidente Jair Bolsonaro. De tão corriqueira, até ganhou um apelido no jargão parlamentar de Brasília.
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APOIO DE PESO
O apelido do expediente é Jabuti. Trata-se de uma referência a um aforismo segundo o qual, se alguém encontrar um jabuti sobre uma árvore, é porque ele foi posto lá por outra pessoa. Afinal, os jabutis, sozinhos, são incapazes de subir em árvores. O "jabuti" do jargão parlamentar é algum artigo incluído de contrabando dentro de um projeto de lei que trata de um assunto completamente distinto. Ou seja, ninguém precisa saber como foi parar ali. O importante é que ele está lá.
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A defesa desse expediente ampliou o bombardeio contra Salles, que, a propósito, nunca contou com a simpatia dos ambientalistas. Os militantes mais tradicionais da área o viam justamente como um jabuti numa árvore: alguém que não deveria estar ali. Desde então, passou a ter sua permanência no cargo questionada por gente de fora e até de dentro do governo.
Salles, porém, se mantinha sobre a árvore com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, que o admirava pela fidelidade e pela coragem que ele tinha para bater de frente com os adversários que o Planalto reuniu contra si nessa área tão sensível. Bolsonaro não apenas o segurou, como o apoiou ostensivamente durante os longos 427 dias que se transcorreram desde aquela reunião ministerial. E só decidiu afastá-lo agora para que não respingassem ainda mais em seu governo as manchas das acusações feitas a Salles.
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As acusações são graves e precisam ser apuradas a fundo. A Polícia Federal, em inquérito devidamente autorizado pelo STF, investiga se Salles teria se valido do poder de seu cargo para prejudicar uma operação sobre o desmatamento ilegal e o contrabando de madeira da Amazônia. Caso venha a ser confirmada com provas conclusivas, haverá de merecer uma punição mais severa do que a perda do cargo de ministro.
CORDA BAMBA
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Enquanto a PF não concluir seu trabalho, o Ministério Público não apresentar a denúncia e a Justiça não analisar o caso, o episódio da saída de Salles deve ser analisado apenas por suas implicações políticas. A rigor, a única mudança que haverá na condução da política ambiental do governo será a do estilo pessoal do titular da pasta. O mesmo decreto que destituiu Salles trouxe a nomeação de seu substituto, Joaquim Álvaro Pereira Leite, Secretário da Amazônia e Serviços Ambientais do Ministério do Meio Ambiente — ou seja, alguém afinado com a linha de trabalho do ex-ministro.
Se Pereira Leite terá mais sucesso do que o antecessor é algo que dependerá de sua habilidade para se equilibrar sobre a corda bamba em que se transformou a questão ambiental brasileira. Ele terá que implementar políticas afinadas com os objetivos do governo sem, no entanto, atrair contra si uma carga de críticas tão pesada quanto a que foi lançada contra Salles. Terá que se esquivar do debate ideológico numa das áreas mais ideologizadas de toda a administração pública. Em resumo, não terá vida fácil.
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As denúncias contra Salles, de um modo geral, partiram de Organizações Não Governamentais que, nos últimos anos, atuaram na Amazônia como se não devessem satisfação a ninguém. Também partiram, muitas vezes, de dentro do próprio Ministério do Meio Ambiente. Mais especificamente, de órgãos como o Ibama e o ICM-Bio, que fazem parte da estrutura do ministério e são integrados por funcionários de carreira que, de um modo geral, tinham muito mais autonomia nos governos anteriores do que tiveram sob o comando de Salles.
O ex-ministro sempre se apresentou como defensor de uma política ambiental capaz de combinar as medidas de preservação ambiental com a exploração racional dos recursos econômicos da Amazônia e dos demais biomas brasileiros. Para os ambientalistas isso é impossível: essa ideia, por si só, já representa uma ameaça ao meio ambiente.
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O ministro também se opunha à autonomia que os funcionários dos órgãos ligados ao ministério tinham para aplicar multas e estabelecer sanções pesadas a quem considerassem infratores. Para ele, as multas deveriam ser a última providência, depois de concluída toda a investigação das eventuais irregularidades, e não a medida inicial do processo. Com uma agenda tão contrária à que vinha sendo posta em prática ao longo das últimas três décadas, é natural que Salles fosse considerado um estranho no ninho ambientalista. Tudo a fazer, agora, é aguardar o desfecho dessa novela que ainda está longe do fim.
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