Último adeus ao ator Milton GonçalvesMarcos Porto / Agência O Dia

Rio - O corpo do ator Milton Gonçalves foi velado no Theatro Municipal, no Centro do Rio, na manhã desta terça-feira. A cerimônia, aberta ao público, começou por volta das 9h30. Catarina e Alda Gonçalves, filhas do veterano, já estavam no local antes mesmo do velório começar. Por volta das 13h15, o corpo do ator foi levado para o Cemitério da Penitência, no Caju, onde será cremado em cerimônia restrita à família. 
Durante o velório, foram estendidos sobre o corpo do ator uma bandeira da Mangueira, escola do coração, uma camisa do Flamengo, time pelo qual era apaixonado, fotografias e um troféu, além de outros artigos caros ao artista. Alda Gonçalves vestiu a camisa do Carnaval deste ano da Acadêmicos de Santa Cruz, escola que homenageou o veterano em seu enredo. "Cara curioso, interessado pelo mundo. Representamos seu lado judeu e o respeito às religiões", disse Alda. 
Documentário
A filha do artista também contou que a família prepara um documentário sobre Milton a ser lançado em breve. Com direção de Luiz Antonio Pilar, o filme vai abordar a versão mais familiar de Gonçalves. Alda comemorou o fato da Acadêmicos de Santa Cruz ter homenageado o pai este ano. Milton assistiu ao desfile e ficou extremamente emocionado, contou a filha.

"Ele enchia a casa de livros. A gente tinha todas as enciclopédias do mercado. Minha mãe às vezes reclamava. Ele dizia para deixar os livros espalhados: 'um dia a criança se abaixa, pega o livro, e a magia acontece'", emocionou-se.

A filha também contou que os pais tiveram seu primeiro encontro na Estação Primeira de Mangueira. "A dor é profunda. A gente vai sentir muita falta do riso alegre dele, do olhar feliz, da alma pura, da brincadeira permanente. Fica a certeza de dever absolutamente cumprido", afirmou.

Alda revelou ter feito um combinado com os irmãos Maurício e Catarina. Para além da memória de Milton e de sua risada, classificada pela filha como melhor do mundo, os irmãos combinaram de lembrar de seu humor. "Fizemos um pacto de nunca esquecer a sacanagem, o deboche. Meu pai era uma figura muito engraçada. Onde chegava, fazia todo mundo rir. Nas gravações mais complexas, nas situações mais adversas".
Maurício Gonçalves, filho de Milton, afirmou que o pai estava enfrentando dificuldades de saúde desde um AVC sofrido em 2020. Ele ressaltou que o artista estava sempre ativo e, apesar da dor, contou que o pai fez uma boa passagem.

"Meu pai falava que eu era o filho do piolho. Ele que era filho do piolho. Não conseguia parar. Ele foi paraquedista, para se ter ideia. Quando ligava a televisão era pra ver TV Senado, saber o que estava acontecendo para lutar", disse.

Ao falar sobre os ensinamentos do pai, Maurício destaca a postura de ter a cabeça erguida. "Levantar a cabeça. Não abaixar a cabeça nunca para ninguém. Não ter vergonha da pele e lutar até o final", afirmou.

Sobre o altar de homenagem ao artista, repousaram ícones da religião judaica. Maurício explicou que o pai era um ecumênico e maçom. "Meu pai era tudo. Tinha uma relação muito forte com a comunidade judaica, com o candomblé. Era um brasileiro".
Amigos se despedem
O ator Mateus Solano destacou o legado do artista, que era comprometido com a cidadania. "Milton lembra a gente que não basta ser um bom profissional, tem que ser um bom cidadão. Além de ser grande ator também lutava pelo movimento negro, pelos artistas, foi sindicalista, entrou para política. Sempre lutou para não ser apenas um rostinho bonito na televisão", afirmou. "Um homem vibrante, ator que até os 80 anos estava trabalhando, fazendo a gente ser feliz. Tenho as melhores lembranças como espectador. Desde criança vendo seu Milton em inúmeros papéis. Depois, tive a oportunidade de contracenar com ele e ouvir suas histórias de vida", completou.
O ator Antônio Pitanga também foi se despedir do amigo. "Uma amizade inaugurada no seio da juventude, no seio de uma consciência política, racial, em que traçamos uma amizade inauguradora dos desejos, da afirmação do negro. Ele sai da vida e entra na história com a missão cumprida. Cabe a nós continuar a luta de Milton Gonçalves. Milton Gonçalves para mim é conhecimento. Essas andanças e lutas significaram muito pra mim", afirmou. 
O ator Déo Garcez, que interpretou o advogado abolicionista Luiz Gama no Teatro e na TV, conta que Milton foi inspiração para atores negros. "Parte um amigo amado. Sobretudo, um ser humano de um caráter incrível. Entendeu perfeitamente o que é ser negro no Brasil dada toda a dificuldade de existir no mundo e num país racista e preconceituoso. Ele ultrapassou barreiras com total consciência. Ele dizia isso: 'Eu gosto de ultrapassar barreiras'".
Zezé Motta contou que contracenou tanto com Milton Gonçalves na dramaturgia que se sente viúva. "Eu fui tantas vezes mulher do Milton na dramaturgia, que estou me sentindo viúva. As pessoas que não tiveram intimidade com ele não têm noção de como era divertido, engraçado. Ele tinha aparência séria, mas debochava de tudo".
O ator Lázaro Ramos se emocionou ao falar de Milton. "Em pouco tempo a gente volta ao Teatro Municipal para se despedir de mais uma das grandes pessoas importantes da nossa cultura. Dona Ruth de Souza, Elza Soares, e agora seu Milton. São pessoas que deixam um legado enorme. Seu Milton, pessoalmente pra mim, tem um sentido maior porque é a pessoa que abriu o caminho para eu chegar onde eu cheguei. Se eu sou ator, se eu tenho alguma ativação política é muito pela voz que ele abriu a todos nós", declarou o ator.
O ator e cantor brasileiro Tony Tornado, de 92 anos, disse que era um amigo de vida de Milton. Dentre diversas afinidades, os dois têm em comum terem sido paraquedistas. Ao citar os ensinamentos recebidos, o cantor ressaltou que o artista é uma referência. "Milton o tempo todo era referência, era poesia, ensinamento. Há muito eu escuto o Milton Gonçalves. Eu digo escuto, porque eu não deixei de escutar. Eu ainda escuto Milton Gonçalves", afirmou.
Também compareceram à cerimônia a atriz veterana Léa Garcia e a atriz Elisa Lucinda, dentre muitos artistas, em especial da dramaturgia negra. A deputada Benedita da Silva e o ex-deputado Chico Alencar também participaram da despedida.
A Mangueira enviou uma coroa de flores para a despedida do artista. "Que seja eterna a sua memória, Estação Primeira de Mangueira", diz a inscrição.
Último adeus
Ao fim da cerimônia, Alda Gonçalves entoou um cântico de Oxalá, que o pai cantava todos os dias. "Vamos cantar para iluminar a passagem desse filho de Obaluaiê, desse filho de Nãnã", convocou. Os amigos e parentes cantaram à marcação de tambores no salão do Theatro Municipal. O babalaô Ivanir dos Santos estava entre os presentes cantando.

Alda acrescentou que o pai já havia cumprido sua missão em sua vida. Um amigo da família cantou à capela a canção "Eu sei que vou te amar", emocionando os familiares e amigos.
Milton Gonçalves morreu nesta segunda-feira, em sua casa, no Rio. O ator tinha 88 anos. De acordo com a família, a morte foi consequência de problemas de saúde que ele enfrentava desde que sofreu um AVC, em 2020. Na ocasião, o artista ficou três meses internado e precisou da ajuda de aparelhos para respirar.
Legado
Um dos grandes ícone das televisão brasileira, Milton teve um acidente vascular cerebral em fevereiro de 2020, durante uma feijoada na quadra do Salgueiro. O ator ficou internado por três meses no Hospital Samaritano, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, e chegou a precisar da ajuda de aparelhos para respirar. A última vez em que ele esteve na TV Globo foi com a minissérie "Se eu Fechar os Olhos Agora", de 2019.
Nascido em 9 de dezembro de 1933, no interior de Minas Gerais, Milton Gonçalves ficou conhecido por sua longa carreira em produções da TV Globo, desde quando chegou na emissora carioca, em 1965, como parte do primeiro elenco de atores do canal. Desde então, o artista esteve em novelas marcantes como "O Bem Amado" (1973), "Sinhá Moça" (1986) e "O Rei do Gado" (1996). Sua última novela foi "O Tempo Não Para", de 2018, e, atualmente, ele pode ser visto em "A Favorita", no Vale a Pena Ver de Novo.