Por Priscila Correia
Rio - “Lembre-se que seu único objetivo é chegar em casa a salvo”. A frase, dita pela personagem Bailey, médica e mãe de um menino de 13 anos no seriado 'Grey's Anatomy', chama a atenção por tratar de forma verdadeira o racismo e a maneira como os negros são tratados pela sociedade. A cena, que comove ao mesmo tempo que causa uma enorme indignação, aperta o peito e dá um nó na garganta de quem assiste, além de mostrar como a ideia de uma sociedade igualitária para todos ainda está mais no papel e nas redes sociais do que na realidade.

Na vida real, exemplos como os da ficção não são poucos. Bruna dos Santos Silva Cruz, mãe de Eduardo, atualmente com 6 anos, contou à coluna como seu filho era tratado na escola há 2 anos. Levado, como a maioria das crianças de sua idade, ele costumava ir e voltar de transporte escolar. Até que, certo dia, ela saiu mais cedo do trabalho e resolveu buscá-lo. Ao chegar, foi abordada pela professora, falando claramente que não aguentava mais seu filho, que o mesmo era desobediente e implicante. “Ela falou tudo isso na frente dele e eu saí de lá chorando. Apesar de triste e assustada com a atitude dela, chamei a atenção dele para que melhorasse o comportamento. Mas um tempo depois, em uma festa infantil de um coleguinha, uma mãe comentou que a tal professora era absurdamente racista, e me contou que diversas vezes chegava na escola e via o Eduardo sozinho sentado no corredor de castigo. Naquele momento, me senti a pior mãe do mundo, pois meu filho só tinha 4 anos, passou por tudo isso e eu ao invés de defendê-lo, briguei com ele acreditando que ele realmente não obedecia na escola”. O menino, provavelmente não se deu conta do preconceito que sofreu, mas Bruna certamente jamais vai esquecer o ocorrido.
Tia de quatro crianças – Laryssa, Edison, Rayssa e Lorena, de 9, 7, 5 e 3 anos respectivamente -, Jeniffer Cornélio, que é pedagoga, sempre foi presente na vida dos sobrinhos, inclusive com participação no processo educacional deles. E assim como Eduardo, a sobrinha mais velha também passou por problemas na escola. Aos 5 anos, quando chegou da aula, Laryssa disse que a professora havia afirmado que ela não era uma criança preta e que ser preta era ruim. “De início fiquei chocada com tamanha audácia, pois sempre tive em mente a importância da fala de uma professora, principalmente na pré- escola. Lembro dos olhos perdidos dela, pois sempre dizemos a ela que é uma criança linda e preta, que seu cabelo é uma coroa. Sentei e conversei com ela, busquei referências, mostrei vídeos e afirmei que, sim, ela era preta. Em seguida, conversei com meu irmão e minha cunhada e fomos à escola. Nos deparamos com profissionais totalmente sem preparo, com um processo educacional arcaico, racista e com um diálogo minimizador com relação às consequências de um ato de uma profissional tão importante no desenvolvimento sócio intelectual de uma criança. A professora, assim como toda e qualquer pessoa racista que não se reconhece, se desculpou, e com pesar isentou- se, dizendo que não havia empregado bem as palavras, pois em sua opinião não existem classificações raciais e sim seres humanos”, conta.
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Os dois casos levantam dois pontos bastante cruéis em relação ao racismo: que ele é cometido desde sempre, quando a criança ainda nem tem a real noção do que está acontecendo; e que pessoas brancas certamente nunca saberão o que é o preconceito vivido por negros. “É massacrante ser uma criança preta na escola. Sei bem o que passam a todo tempo, mesmo que às vezes sejam coisas sutis, que podem passar despercebidas a olhos acostumados com a vivência do racismo, como uma ação naturalizada. Sou educadora e estudiosa das questões étnicos raciais e suas vertentes, o que facilita mediar e acolher as crianças quando chegam da escola com suas questões. Educar crianças pretas nesta sociedade racista, com caminhos antirracistas, é um grande desafio”, diz Jeniffer. E complementa: “infelizmente, crianças pretas não têm a oportunidade de descobrir as coisas, de se reconhecer, de firmar uma identidade e qualquer outra coisa normal que a infância traz. Antes de tudo, carregam consigo um estigma social, uma marca e isso pode causar traumas até a vida adulta”.

Representatividade, empoderamento e justiça social

Falar sobre empoderamento de pessoas negras, muitas vezes, pode parecer lugar comum. Mas ao contrário do que alguns pensam, empoderar um grupo não é apenas tornar as pessoas mais fortes, mas dar poder para que elas façam suas escolhas e que tenham as mesmas vantagens dos mais privilegiados.

Janine Rodrigues, escritora, educadora e fundadora da Piraporiando, uma EdTech cujo trabalho é a criação e publicação de obras literárias que originam projetos educativos focados na diversidade para uma educação antirracista, antibullying e sem preconceitos, comenta que este conceito muitas vezes fica meio romantizado, o que acaba interferindo na compreensão do seu real sentido. “O empoderamento é um instrumento de luta social para a promoção da libertação de grupos minoritários, tais como mulheres, pessoas negras, lgbt, indígenas, dentre outros. Não minoritário em quantidade, mas, sim, como sendo grupos que estão em situação de vulnerabilidade, dentre outras questões sociais. Ou seja, pessoas com menor acesso aos bens sociais, às leis, mesmo àquelas que surgiram para protegê-las. Quando o indivíduo pode ir à escola, pode comprar uma casa, pode investir em sua vida profissional. E quando uma criança pode transitar em quaisquer espaços. Ou seja, pode estudar em uma boa escola, e estudando nesse local, sendo ela uma criança negra, pode ter acesso a todos os benefícios materiais e de bem-estar que as não negras. Aí, sim, existe o empoderamento”, explica.

A seguir, Janine fala um pouco mais sobre o papel dos pais na construção de uma sociedade igualitária, como a escola tem papel fundamental na vida das crianças e como a Educação, especialmente a Literatura, podem transformar a sociedade.

Como empoderar crianças negras nessa sociedade que vivemos?

Empoderar uma criança negra é ter ações para que todas as pessoas negras tenham acesso a bens sociais e que possam ser livres, estudar, comprar suas casas, ter salários dignos, estar nos livros e nas revistas, nas lideranças. Quando ela acorda e liga a TV, quantas pessoas negras ela vê? E a mãe, quando era pequena, como era? Quando uma criança negra vai a um teatro, quantas crianças negras ela vê? E quando elas veem, é de maneira consciente de quem elas são, de onde, como e por que podem chegar ali? O empoderamento real do indivíduo só acontece quando todos que participam da sua luta chegam a este lugar almejado, mas passando primeiro pelo processo de empoderamento do coletivo.

Para pais de crianças negras: Como conversar com os filhos sobre como devem enfrentar situações do dia a dia em que sofram racismo? É preciso falar ludicamente ou acredita que mostrar a realidade de forma mais crua seja o melhor caminho?

Para mais e mães de crianças negras algo que é importante é o diálogo. Não para minimizar a dor. O racismo é muito cruel e dizer coisas como'' vai passar'', '' é bobagem'' etc, não ajuda, só piora. Porque não diminui a dor e parece que a criança está sofrendo sem motivo, quando na verdade há um motivo e ele é sério. Mas o diálogo ajuda para a criança falar o que ela está sentindo. É o momento da família mais ouvir que falar. Falar com cuidado e dando força e afeto. É essencial a criança se sentir segura para denunciar, saber seus direitos e jamais ser incentivada a não falar nada ''porque não adianta''. Racismo é crime. Se seu filho, sua filha, foi vítima de racismo, denuncie. Mesmo que a outra parte peça desculpas. Tenha cuidado com a exposição da criança, mas não para encobrir o racismo e, sim, para ajudar ele/ela a compreenderem que eles não têm do que sentir vergonha. Vergonhoso é o racista. Sobre falar ludicamente, não sei. Tenho receio desse lúdico ter um tom meio romantizador, mesmo sem a família querer romantizar. Acho que falar com afeto é o melhor. E quem mais deve falar sobre isso são as famílias com crianças brancas. Porque outro problema é que isso fique como um problema a ser de única e exclusiva gestão da família da criança negra.

É muito comum que pais de crianças brancas acreditem que um caminho para não ser racista, é não abordar o racismo, não tocar no tema. O que acha sobre isso? Como mostrar para essas crianças que não devem ser racistas?
Converse com seus filhos sobre o que é o racismo. Uma vez, numa escola de bairro nobre do Rio, onde fui fazer uma palestra, um pai me perguntou o que fazer, pois seu filho de 5 anos foi racista com uma coleguinha, sendo que o menino provavelmente nem sabia o que era racismo, na opinião do pai. Este pai achava que era muito pesado falar sobre o que era o racismo com seu filho de cinco anos. Afinal, ele podia ficar abalado emocionalmente. Eu perguntei pra ele porque a coleguinha negra, de também 5 anos, podia ficar abalada e o filho dele não. Os efeitos do racismo minam as forças e potencialidades de toda a sociedade.
Ensinar igualdade e respeito é como se ensina igualdade e respeito para outros assuntos. Por exemplo: Pensemos numa família branca classe média brasileira. Um integrante da família vai a uma loja de griffe e é tratado com desdém porque está de tênis. As pessoas da loja se revoltam com a cena , faltou respeito com o rapaz, afinal, ''todas as pessoas são iguais''. Mas se este rapaz é negro, muito provavelmente as pessoas não se incomodariam com o fato dele não ter sido bem atendido. O racismo, que muito bem nos ensina Silvio Almeida, é estrutural. Há tolerância de práticas racistas cotidianas e é por isso que o racismo é mantido forte e estruturado em nossa sociedade. Eduque as crianças tendo em seu dia a dia pessoas, conteúdos, arte, cultura, ciência e tudo mais que puder imaginar com pessoas negras protagonizando. Quebre o processo tendencioso que coloca as pessoas negras e tudo referente a elas de uma maneira inferior, desrespeitosa, racista.

Como os pais de crianças negras podem fortalecer seus filhos para enfrentarem situações de racismo?

Primeiro, nunca, jamais, normalizando o racismo. Não deve ser normal esperarmos que um dia o racismo vá se manifestar na vida de uma criança. Pode ser comum, infelizmente é. Comum no sentido de ser frequente. Mas não é normal. Depois, fortalecer essas crianças, buscando seus direitos, unindo-se a grupos de mães, de pais, de famílias. Apoiar-se no coletivo. Lembra o que falei do empoderamento ser coletivo? E daí, sim, tendo mais força, afeto e conhecimento para abordar este tema com seus filhos e filhas de maneira mais estruturada.

Como as escolas podem ajudar no processo de desconstrução do racismo estrutural?

Cumpram a Lei 10.639. Saiam da romantização da educação antirracista e tenham ações práticas, planejadas, de curto, médio e longo prazo e de forma continuada. Parem de achar que em novembro uma ação vai resolver o que não foi pauta o ano todo. Façam análise e medição dos impactos das ações antirracistas ao longo do ano. Preparem-se para enfrentamentos. Muitas famílias não querem este assunto na escola e cuidado com a relação cliente/fornecedor que você tem com as famílias. Porque por mais difícil que seja, a escola precisa ter autonomia. Parem de falar só de representatividade e comecem a atuar na proporcionalidade. Ter 15, 20, 40 professores e uma pessoa negra entre eles não faz da sua instituição uma escola antirracista. Estudem o tema. Vocês, na maioria das vezes, não sabem falar sobre isso. E é esperado que muitas escolas não saibam. Ninguém se forma em Educação, Pedagogia e qualquer outra área e tem um grade sobre educação antirracista. Não estudaram autores e autoras negras. Muitas nem conhecem a Lei 10.639. Reconheçam que não sabem, mas que querem fazer e unam-se a uma imensidão de educadores negros que podem apoiar vocês para este trabalho aumentar e, verdadeiramente, trazer resultados. Parem de colocar a cultura negra no campo do exótico.

Os livros escolares falam a verdade sobre o racismo no Brasil e no mundo?

Poucos falam de uma forma mais próxima da verdadeira. Mas, para além disso, temos também a questão sobre as muitas faces de um acontecimento. A história do povo negro não começou na escravidão. Tão pouco parou nela. Mas ainda temos este como um dos temas mais centrais quando o assunto é população negra. Demonização, por exemplo, das religiões de matrizes africanas e como consequência sua proibição e marginalização. Ainda temos facilidade de falar de mitologia grega, mas mitologia africana nem pensar. E quantos são os autores e autoras negras estudados e produtores destes livros, destes conhecimentos? É ainda a história sendo contada pelo ''caçador''. Sobre como é no mundo, tenho conhecimento somente sobre alguns países, mas não dá para usar tanto como exemplos, pois são outros contextos sociais. Os problemas se manifestam de diferentes maneiras. Acho que no Brasil tivemos alguns avanços graças ao movimento negro que vem nos empoderando muito. Mas também perdemos muito nos últimos anos, consequência da falta de crença na ciência, na pesquisa, no conhecimento. Mas seguimos.

Como a literatura infantil pode ajudar no empoderamento de crianças negras?

Ainda que a subjetividade de todos e todas nós, seres humanos, seja algo de suma importância, quando uma criança negra vê nos livros personagens negros, há um estabelecimento de relação entre eles. Esse brincar do imaginário é importante para crianças e adultos também. E não só histórias de príncipes e princesas negras, que, sim, são fundamentais neste mundo lúdico e nesta fase da vida, mas também o cientista, o pesquisador, o curioso, a menina inteligente e esperta, o menino que curte música, a madrinha do bolo de fubá, os serem encantados e inanimados etc. Tudo isso constrói bases desse empoderamento. Quando escrevi “Nuang - caminhos da liberdade”, lembrei muito do meu pai e da minha avó. O livro fala de liberdade e tem palavras do tronco linguístico banto, que eu falava quando criança sem nem mesmo saber ainda todos os significados. Fui saber só adolescente. Em “Contos Piraporianos”, a personagem Kauara é inspirada em pequenas lembranças minhas da infância sobre como era difícil minha relação com meu cabelo. Daí um dia ganhei uma flor e coloquei. Amei. E comecei a achar lindo cabelo com flor. Em '' Onde está o Boris'' todos os personagens simbolizam amigos meus da infância. Minha infância é ponto chave de todo meu trabalho e meus livros contam estas histórias que remontam esse meu afeto de criança pela infância. E eu amo literatura infanto-juvenil. Sempre estou lendo algo. Adoro os livros da Kiussam Oliveira, Cidinha da Silva e estou apaixonada pelo “O Pequeno Príncipe Preto”, do Rodrigo França.

Como personagens como Pantera Negra podem ajudar nesse empoderamento e representatividade? Qual é a importância de um personagem como ele? Há outros que devem ser apresentados às crianças negras para que se sintam representadas?

É o que falei sobre referências, é muito importante. Sobre mais personagens, acho importantíssimo as crianças conhecerem os heróis e heroínas brasileiras. Também penso neste novo levante do afrofuturismo, algo necessário para as crianças conhecerem neste processo de empoderamento.

Acredita que movimentos como Black Lives Matter devem ser explicados para crianças?

Com certeza! É algo que faz parte de nossas vidas e, como eu disse, empoderar-se passa pelo conhecimento, consciência de nós mesmos, lugar que ocupamos e que queremos ocupar.

A nova vice-presidente americana é negra. Mesmo que política não seja um assunto abordado entre crianças normalmente, qual é a importância de falar sobre o assunto com os pequenos?

O tema está na vida das crianças o tempo inteiro. Na nossa vida, tudo é política. Talvez não esteja próxima de discussões partidárias, mas da política não tem como nos afastarmos. Em linhas gerais, a política organiza a convivência social. Acho que o que falta é falar, conversar mais sobre isso com as crianças. Até mesmo usar exemplos do dia a dia para, por exemplo, falar sobre democracia. Numa casa, irmãs, irmãos, primos e primas brincam. Alguns decidem que querem ver TV e outros querem jogar vídeo game. Uma das irmãs propõe uma votação. A atividade mais votada será a realidade. E quem ''perdeu'' na cotação poderá brincar também e jogar em suas vezes. Ao final, nova votação. TV ou videogame? Pronto, eis aí uma chance de falar de política, de democracia. É totalmente possível e necessário. É educar. Educar demanda tempo, análise, respeito, afeto, observação.

Acredita que um dia teremos uma sociedade realmente igualitária para todos?

Acredito, com certeza. Caso contrário, não teria o trabalho que tenho. Mas sei também que algumas ''lógicas'' precisam mudar e que privilégios precisam deixar de existir. Não acho que será fácil nem rápido.
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