Sigilo de informações vira troca de acusações entre presidenciáveis; confira os 'temas' do PT e de Bolsonaro
Artigo 3º da Lei de Acesso à Informação prevê o sigilo, mas como exceção. A lei nº 12.527 foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 2011 e entrou em vigor no ano seguinte
Silhueta do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os dois disputam o 2º turno das eleições presidenciais no dia 30 de outubro. - Evaristo Sa / AFP
Silhueta do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os dois disputam o 2º turno das eleições presidenciais no dia 30 de outubro.Evaristo Sa / AFP
O sigilo de cem anos não é nenhuma novidade e não surgiu agora, mas o tema tem sido utilizado com frequência em debates e troca de acusações entre os presidenciáveis Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Messias Bolsonaro (PL).
Se eleito, uma das promessas que o ex-presidente Lula tem feito durante toda a campanha é acabar com o sigilo de cem anos imposto pelo adversário. No último domingo (16), o petista reiterou a promessa no debate transmitido pela Band dos candidatos que disputarão a presidência no segundo turno e declarou que durante o governo do Partido dos Trabalhadores não existia sigilo: “Não tinha sigilo do filho, da filha, do cartão de crédito. Era o Portal da Transparência e a Lei de Acesso à Informação: duas maravilhas que o PT criou para que o povo acompanhasse em tempo real as coisas que foram feitas neste país”.
É verdade que a lei citada pelo ex-presidente garante a publicidade das informações e foi sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011. O que ele não deixou claro é que esta mesma lei permite também o sigilo, como exceção, e que nos governos do PT alguns temas também ficaram em segredo.
Em 2013, o jornal O Estado De São Paulo divulgou dados de uma planilha do Palácio do Planalto a qual teve acesso contendo gastos da Presidência da República com o cartão corporativo entre os anos de 2003 e 2010. Esses dados foram classificados como ‘sigilosos’ com a alegação de que se tratavam de “informações estratégicas para a segurança e para o Estado”.
Nesse período, as despesas do Executivo totalizaram um valor de R$ 44,5 milhões e incluíam gastos com produtos de limpeza, material de caça e pesca, sementes, comida de animais domésticos, serviços e produtos médicos, estacionamento, material esportivo, pedágio, comissões e corretagem, materiais para festas e homenagens, dentre outros. Desse total, R$ 31,6 milhões foram utilizados para pagar despesas com hotéis e aluguel de carros.
Em 2008, ainda no governo Lula, um escândalo com o uso indevido dos cartões por ministros de Estado veio à tona e uma CPI identificou “saques irregulares e o pagamento de despesas pessoais”.
Embora o período compreendido seja anterior à Lei de Acesso à Informação, é importante esclarecer que a Constituição Federal de 1988 prevê a publicidade e o sigilo, quando necessário, das informações governamentais. A garantia está prevista no inciso 33 do artigo 5º da Constituição Cidadã.
Em 2012, já no governo de Dilma Rousseff, dos R$ 46,1 milhões gastos com o cartão, R$ 21,3 milhões foram utilizados de forma secreta. O dinheiro, em sua maioria, foi utilizado para saques e compras da presidência, da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Ainda de acordo com a reportagem, “parte dessas despesas secretas é corriqueira e não se enquadra em informações estratégicas e de segurança”. Na época, o Tribunal de Contas da União já apontava irregularidades no sigilo com os gastos do cartão corporativo. De acordo com a jurisprudência, a utilização da verba sigilosa deve ser regulamentada pelo gestor. Criado em 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o objetivo do cartão corporativo era dar mais transparência aos gastos do governo.
No início deste ano, Jair Bolsonaro respondeu ironicamente a um seguidor do Twitter que o questionou sobre o motivo de o governo impor sigilo de cem anos em alguns assuntos: “em cem anos você saberá”, tuitou o presidente que também tem gastos com o cartão corporativo mantido sob sigilo. Apesar do valor total dos gastos ser divulgado no Portal da Transparência, não é possível verificar os tipos de serviços realizados e os produtos comprados com a modalidade. Entre janeiro de 2019 e março de 2021, uma auditoria do TCU revelou que Bolsonaro gastou um montante de R$ 21 milhões com o cartão corporativo.
Nas próximas linhas, o leitor poderá comparar alguns temas que ficaram sob sigilo tanto nos governos do Partido dos Trabalhadores quanto no governo de Bolsonaro.
Os sigilos do PT
De 2003 a 2010, o governo do então presidente Lula gastou R$ 44,5 milhões com o cartão corporativo. Já em 2013, enquanto Dilma Rousseff dava continuidade ao governo do Partido dos Trabalhadores, o apoio financeiro do Brasil a Cuba e Angola foi colocado sob sigilo por 15 anos. Somente em 2027 o teor dessas transações poderá ser revelado. Segundo reportagem da época do portal Uol, foram desembolsados US$ 875 milhões pelo BNDES para financiar empresas brasileiras que exportavam bens e serviços para esses dois países. Em 2021, o Estadão divulgou que o dinheiro não foi doado pelo Brasil, mas emprestado e que a Angola já havia quitado sua parcela em 2019.
Em 2016, os e-mails do servidor Jorge Rodrigo Messias foram colocados sob sigilo por cem anos com o argumento de serem pessoais. Na época, o ‘Bessias’, como ficou conhecido, foi o escolhido por Dilma para levar o termo de posse que daria o cargo de ministro da Casa Civil a Lula, em uma tentativa de fazer com que o ex-presidente fosse julgado em foro privilegiado por seu envolvimento na operação Lava Jato. O ex-juiz federal Sérgio Moro, responsável pelo caso, divulgou uma gravação telefônica entre Dilma e o petista conversando sobre a estratégia.
Enquanto governou, Dilma impôs sigilo sobre as informações relativas às viagens que ela e seu vice, Michel Temer, fizeram ao exterior. Por decreto, os dados só poderiam ser divulgados depois que seu mandato como presidente terminasse.
Por meio de decreto, Dilma também colocou em segredo informações relativas à ‘pedalada fiscal’ que acarretou em seu impeachment em 2016. O valor exato da dívida e os devedores de tarifas que deveriam ser pagas à Caixa Econômica Federal referente a programas sociais, como o Bolsa Família, ficaram sob sigilo após decisão da ex-presidente. A CEF foi contratada pelo governo para cumprir com a realização desses programas e deveria receber pelos serviços.
O sigilo de Bolsonaro
Nos quatro anos de governo, Bolsonaro colocou sigilo de cem anos em informações que deveriam ser públicas, alegando que eram informações pessoais. Foi o caso da carteira de vacinação do presidente, dos visitantes da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no Palácio do Planalto e também dos crachás de acesso à casa presidencial emitidos em nome dos filhos Carlos Bolsonaro (Republicanos) e Eduardo Bolsonaro (PL). A apuração disciplinar do Exército Brasileito contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello por participar de ato político ao lado do presidente e a lista com os nomes de funcionários que publicam em um perfil da Secretaria Especial de Comunicação, a Secom, também estão em sigilo.
Em abril deste ano, os encontros entre Bolsonaro e os pastores do Ministério da Educação, Gilmar Santos e Arilton Moura, suspeitos de pedirem dinheiro em troca da liberação de verbas para prefeituras também entraram no rol de segredos envolvendo o chefe do Executivo. Na época, após O Globo solicitar, por meio da Lei de Acesso à Informação, a lista de entrada e saída dos dois pastores no Palácio do Planalto e o gabinete presidencial, o Gabinete de Segurança Institucional indeferiu o pedido justificando que a informação “poderia colocar em risco a vida do presidente da República e seus familiares”.
Em fevereiro os documentos relativos à viagem do presidente à Rússia foram colocados em sigilo pelo Itamaraty. Os documentos produzidos pela Embaixada Brasileira em Moscou sobre a viagem e o encontro de Bolsonaro com o presidente russo Vladimir Putin ficarão em segredo por um prazo de cinco anos.
As mensagens do Itamaraty relacionados às prisões do ex-jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho, no Paraguai em 2020, e do médico bolsonarista Victor Sorrentino, no Egito em 2021, foram colocadas sob sigilo de cem anos com a alegação de que “documentos relativos à prestação de assistência consular contém informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem, e, portanto, são protegidos”, alegou o Itamaraty.
O que diz a Lei de Acesso à Informação
O sigilo é permitido por lei, mas como exceção. É o que prevê o artigo 3º da Lei de Acesso à Informação (12.527), que foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011 e entrou em vigor no ano seguinte.
O artigo 31º da mesma lei garante o sigilo de até cem anos, mas limitado apenas às informações pessoais referentes à “intimidade, vida privada, honra e imagem” de “agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”.
A lei diz, ainda, que o acesso às informações referentes à vida privada, à honra da pessoa ou sua imagem, não pode ser limitado com o objetivo de atrapalhar a investigação “de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
Mas a LAI também discorre sobre o sigilo de informações em casos essenciais à “segurança da sociedade ou do Estado”. Nesse sentido, o acesso pode ser restringido em oito situações: quando coloca em “risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional”; prejudicam as “negociações ou relações internacionais”; quando ameaça “a vida, a segurança ou a saúde da população”; oferece um alto “risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País”; em casos de risco ou prejuízo “a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas” e em “projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional”; colocar em “risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares”; e comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.
Nesses casos, a lei assegura que as informações podem ser classificadas como ultrassecreta, com sigilo de 25 anos; secreta, com sigilo de 15 anos; e reservada, com sigilo de 5 anos conforme consta no artigo 24. O 2º parágrafo deste mesmo artigo esclarece que “as informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição”.
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