Para Daniel, de 42 anos, pai da pequena Maria Laura de 5 anos, o combate a esse tipo de preconceito deve ser uma luta diária, seja nas relações sociais, seja internamente - Imagem Arquivo Social
Para Daniel, de 42 anos, pai da pequena Maria Laura de 5 anos, o combate a esse tipo de preconceito deve ser uma luta diária, seja nas relações sociais, seja internamenteImagem Arquivo Social
Por Luciana Guimarães
Niterói - O empresário Daniel Rocha, morador de Icaraí há 8 anos, se viu no mês passado, novamente em uma situação constrangedora ao ser seguido por seguranças no mercado que frequenta: "Eu usualmente faço as compras depois do trabalho, onde trajo roupa social. Neste dia específico, num momento de folga, estava de bermuda e chinelo. Foi o suficiente para despertar nos funcionários o sentimento de desconfiança e para que destilassem o preconceito arraigado. Minha cor e minha roupa ditaram a maneira como eles acreditavam que eu deveria ser tratado.", relata.
Ainda assim, há quem defenda que “o racismo não existe no Brasil” ou “o Brasil é uma democracia racial”. Como considerar tais afirmações verdadeiras se está mais do que provada a forte presença da cultura racista pra onde quer que se olhe?
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A existência do racismo segue o homem. O sentimento humano sempre tentou mostrar sua superioridade sobre os outros animais, além de se diferenciar de outros homens considerados inferiores.
Um marco para a desmistificação da teoria da democracia racial foi a própria Constituição de 1988, que tipifica racismo como crime, isto é, confirma a existência do racismo e a realidade desigual entre pessoas brancas e negras. Caso não existisse racismo, como a legislação brasileira iria criar medidas para combatê-lo (seria contraditório combater algo que não existe)?
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O Brasil se considera e é considerado uma das poucas “democracias racistas” do planeta, o que motivou a UNESCO, em 1950, a promover um estudo sobre as relações harmoniosas entre as raças no Brasil. A conclusão revelou que temos um país multirracial, onde a discriminação era tênue, e não escapamos da estratificação, na medida em que há forte desigualdade social entre os vários grupos raciais.
Outro caso, o da jornalista Julie Alves chamou atenção pela banalidade com que episódios parecidos podem ser relatados em profusão. A repórter, que gravava material para o programa 'Fala Baixada', da CNT, e seu cinegrafista precisaram ser atendidos numa unidade de saúde após terem sido ofendidos e xingados quando faziam uma denúncia sobre o atendimento precário da saúde em Japeri, Baixada Fluminense. Um funcionário público agrediu a dupla e Julie foi chamada de "macaca".
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"Racismo existe, não é velado. Esse episódio é explícito e cruel. Espero que esse crime que aconteceu comigo, sirva de exemplo para outros colegas não abaixarem a cabeça e não deixarem que ninguém o diminua pela sua cor.", afirma a jornalista passado o susto e tentando agora seguir com a vida.
O que Julie e Daniel viveram se explica: o racismo é a pretensão de soberania branca sobre os negros que faz com que uma ideia, de acordo com aqueles que ocupam uma posição melhor no status social, seja autorizada a praticar atos que reduzam ou dominem os supostos inferiores. 
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É uma doença e um dos principais problemas sociais enfrentados nos séculos XX e XXI, causando, diretamente, exclusão, desigualdade social e violência.

Para o psicólogo Leandro C. C. Brito, tantos anos de segregação perpetuam mentalidade arcaica: "O Brasil carrega uma história de 300 anos de escravidão. Depois de mais de um século, ficou enraizado no inconsciente coletivo da sociedade brasileira um pensamento que marginaliza as pessoas negras, as impede de se constituírem como cidadãs plenas. O racismo estruturado é a naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro."
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Não há uma única forma de manifestação do racismo, tampouco de combatê-lo. Mas são muitas as estratégias que podem e devem ser utilizadas para estimular atitudes mais inclusivas e o respeito às diferenças. A conscientização se faz mesmo vital para disseminar e reforçar a importância da participação de todos no combate a essa violência e para identificar atitudes preconceituosas, por exemplo, na escola, com o intuito de esclarecer o que são atitudes racistas e de que maneiras, sutis ou evidentes, elas se manifestam no dia a dia.
Afinal, empatia, respeito e cidadania se aprendem.
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Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no Brasil o preconceito é sempre atribuído ao “outro”.

Assim, 63,7% dos brasileiros entendem que a raça determina a qualidade de vida dos cidadãos, principalmente no trabalho (71%), em questões judiciais (68,3%) e em relações sociais (65%).

Ademais, 93% dos entrevistados admitiram o preconceito racial no Brasil, mas 87% deles afirmaram nunca sentiram-se descriminados; 89% deles afirmam haver preconceito de cor contra negros no Brasil, mas apenas 10% admitiram tê-lo. Por fim, 70% dos brasileiros que vivendo na miséria são negros ou pardos.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2017, revelam que a taxa de homicídios por 100 mil jovens é muito maior em negros do que em brancos. São 185 homicídios de homens pardos ou negros e 10,1 no caso de mulheres para 63,5 de homens e 5,2 para mulheres de pele branca. É importante ressaltar que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, pela lei n.º 7716, de 5 de janeiro de 1989, o racismo é um crime inafiançável.
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Apesar da hostilidade com que habituou-se a conviver nos seus 42 anos de vida, Daniel espera que a filha, Maria Laura de 5 anos, possa experimentar um mundo diferente: "Quero pra ela, um cenário transformado. De paz. Mesmo quando tenho vontade de fazer um escândalo quando sofro racismo, sempre resolvo na paz. A maneira de resolver a situação é no diálogo, pacífico, mostrando a pessoa que ela agiu errado. O acesso a informação é uma forma de empoderar a sociedade e, principalmente a comunidade negra que anseia por mais igualdade racial. Acredito que, com mais consciência e conhecimento, o fim do racismo estará cada vez mais próximo de todos nós."
Em Niterói, a Coordenadoria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Ceppir) de Niterói lançou um número de WhatsApp específico para denúncias a respeito do racismo. O número (21) 96992-9577 funciona apenas para mensagens, áudios e envio de fotos e vídeos. O atendimento é em horário comercial, de segunda à sexta, das 10h às 18h.

De acordo com a Coordenadora do Ceppir, Celecina Rodrigues, esse número do “Fale com a Ceppir” auxilia a as pessoas que forem vítimas de racismo a saberem como agir e onde denunciar, e mantém o sigilo do denunciante.

“Estamos disponibilizando um número de Whatsapp por entender que as vítimas de racismo não sabem como proceder para denunciar. É muito difícil imaginar uma pessoa negra indo à delegacia fazer uma denúncia de racismo. Há tempos se fala que as pessoas vítimas de racismo não têm espaço para serem acolhidas, o que acaba por inibir as denúncias”, explica Celecina.


“Já temos recebido várias denúncias em nosso número convencional. Por isso entendemos a urgência de se implantar o serviço. A melhor forma de combater esse e outros delitos de preconceito é denunciando e trazendo a público. É importante lembrar que essa ação atende a uma demanda antiga do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Niterói (Compir-Nit), já incluído como proposta de conferências realizadas na cidade”, ressalta a coordenadora do Ceppir.

Celecina Rodrigues destaca ainda que as denúncias terão apoio jurídico para encaminhamento aos órgãos competentes para a investigação e prosseguimento de eventual processo, além de serviço de conscientização dos direitos.