Por thiago.antunes

Rio - Motoristas de ônibus que não arrancavam quando o passageiro ainda estava subindo as escadas; escolas públicas que funcionavam bem; confiança no futuro da Nação e gentileza ‘para dar e vender’, como se dizia na época. Estas eram algumas das características do Rio de Janeiro, capital do Brasil, no início dos anos 50, quando a Cidade Maravilhosa recebeu os principais jogos da Copa que acabou indo para o Uruguai.

Naquela fatídica tarde de 16 de julho de 1950, diante de quase 200 mil torcedores, quando Gighia & Cia. ergueram a Taça Jules Rimet, a dor tomou conta de uma cidade que se expandia para a Zona Sul, já tinha em Copacabana a sua Princesinha do Mar e ganhava as páginas do Mundo com o samba. Um Rio de sonho, em que a esperança de dias melhores era a tônica. “Não era esta bagunça que é hoje”, conta Maria de Lourdes Carneiro, 88 anos, viúva, moradora de Copacabana desde aquele ano, quando casou-se com Sylvio e comprou, em inúmeras prestações, o apartamento onde ainda hoje mora com as netas Luiza, 11, e Maíla, 28.

Clique na imagem para ver o infográfico completoArte%3A O Dia

O Brasil se industrializava, a Companhia Siderúrgica Nacional já era uma realidade em Volta Redonda e a Petrobras ainda não estava criada, mas caminhava para deixar de ser apenas um sonho de Monteiro Lobato. Na capital do país, onde o general Eurico Gaspar Dutra vivia no Palácio do Catete, os automóveis aproveitavam a urbanização para cruzar a cidade, mas o principal meio de transporte ainda eram os bondes. “Uma maravilha”, continua Lourdes. “As pessoas se levantavam quando não havia lugar.”

Vivendo do outro lado da cidade, na Tijuca, dona Elza de Souza, 86 anos, recorda-se das ruas enfeitadas e dos preços acessíveis dos ingressos, o que garantiu o público magistral na final contra os uruguaios. As dificuldades de se locomover pelas ruas, nos dias em que o Brasil jogava, ganham destaque na memória da simpática senhora.

Sim, a tal mobilidade urbana começava a dar sinais de que precisava ser bem tratada já no nascedouro, justamente para se evitar que chegassemos aos dias atuais com tamanhos problemas. Uma cena, no entanto, não sai da cabeça de Elza: ver seu pai chorando diante do rádio que comprara para escutar os jogos do Brasil na Copa do Mundo. “Naquela época, filho, isso não era comum para os homens.” Como se vê, o Rio mudou. Que venha a Copa e o brasileiro possa, desta vez, sorrir.

Menos favelas, escolas públicas de qualidade e gentileza acima de tudo

A tarde de 16 de julho de 1950 ainda não saiu da cabeça da carioca Maria de Lourdes Carneiro, viúva de 88 anos. Naquele dia, ela pôs seu melhor vestido e seguiu para o Maracanã com o então noivo Sylvio. Lá, tinha certeza de que assistiria a Seleção Brasileira ser campeã mundial. “Fomos de ônibus. Era fácil tomar condução naquela época”, recorda-se ela. “O motorista parava perto do passeio (calçada) para a gente entrar, e pagava-se pelo trecho da viagem. Hoje não posso mais andar de ônibus. É cada freada, que Deus me livre!”

Lourdes com o então noivo Sylvio%2C no Jardim Botânico%2C dias antes da fatídica finalReprodução

Com o estádio lotado, Lourdes desceu do coletivo, caminhou pela multidão sem ser importunada, entregou seu bilhete ao passar pela roleta e conseguiu um lugar no último degrau da arquibancada. “O Rio não era este mundaréu de gente”, continua. “As pessoas eram gentis, educadas, e a escola pública funcionava.”
A confiança na Seleção, e no futuro do país, transbordava. “Estávamos eufóricos. Ninguém acreditava que perderíamos o jogo. Você precisava ouvir o silêncio após o gol do Uruguai. Foi assustador.”

Assustador também foi a queda da qualidade de vida da cidade. A dona de casa tem certeza de que o que se vê no século 21, não passa perto do que se imaginava que seria a Cidade Maravilhosa. “O Rio piorou muito. Está sujo, cheio de gente e com uma quantidade assustadora de moradores de rua”, diz Lourdes. “Faltou investir na Educação. Se tivessem feito isso, não haveria tanta ignorância. Fico impressionada com a quantidade de gente vivendo nos morros, com as crianças abandonadas.”

Lourdes e as bandeiras que enfeitam a sua casa%3A patriotismo precisa voltar na Copa Alessandro Costa / Agência O Dia

Quando Gighia fez o segundo gol uruguaio, Lourdes já pensava no casamento e nos filhos que sonhava ter — foram três. Mas imaginava que criaria os meninos numa cidade com avenidas largas, transporte público bom e, principalmente, solidariedade. “Já não vejo o patriotismo de antigamente, mas precisamos vencer esta Copa e mostrar uma boa imagem para o mundo. Meu orgulho está ferido, falta organização. Mas sou brasileria e não se cospe no prato que se come.” Que venha o Hexa!

Orgulho de ser brasileira e certeza de que o país chegaria ao Primeiro Mundo

Não se tratou de mais um jogo de futebol. A emoção que aflora nos olhos marejados da aposentada Elza de Souza, de 86 anos, ao falar da final da Copa de 1950, deixa claro que, apesar de passados quase 64 anos, as lembranças daquele 16 de julho continuam vivas. “É como se aquele dia nunca tivesse terminado”, confessa ela que, além da dor pela derrota, lembra da ocasião como a primeira vez em que viu o pai chorar.

Sorridente%2C Dona Elza posa pouco antes da final da Copa de 50%2C vencida pelos uruguaiosReprodução

“Era mais do que um passeio familiar. Aquela geração via chances de, pela primeira vez, chegar ao topo do mundo”, confessa. De fato, a expectativa não poderia ser maior. Por conta da Segunda Guerra Mundial, as edições de 1942 e 1946 foram canceladas pela Fifa, o que só aumentava o furor popular. “As ruas foram decoradas como nunca mais se viu. Meu pai juntou dinheiro e comprou um rádio novo para ouvir os jogos. Era sinal de status”, recorda.

A criação recebida por entusiastas do governo de Getúlio Vargas dava a certeza de que sediar a Copa seria o maior passo rumo ao Primeiro Mundo, num contexto de Europa enfraquecida pelo pós-guerra. A simpatia assumida pelo ex-presidente, no entanto, não impede dona Elza de citar problemas que, assim como hoje, eram alvos de contestações. “A locomoção era impossível em dias de jogos, e já se duvidava do legado. Porém, os ingressos eram bem mais baratos”.

Diante da TV%2C Dona Elza exibe fotos antigas e mostra disposição para torcer pelo BrasilFernando Souza / Agência O Dia

Apesar das críticas, as exibições da Seleção contagiaram a torcida. “Quase 200 mil pessoas abarrotaram o Maracanã. A certeza de vitória era tão grande quanto foi a frustração pelo segundo gol uruguaio. Olhei para o lado e vi meu pai e meu noivo em lágrimas. Um profundo silêncio tomou a multidão. Para um homem daquele tempo, não era fácil deixar as lágrimas caírem”, lembra. Ela, que nunca mais voltou ao estádio, promete torcer de casa para que o Brasil erga a taça. “Deus quis que eu vivesse para ver esse momento. O ‘complexo de vira-lata’ acabou. O choro será de alegria.” Que assim seja!

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