Rio - ‘O caminhão virou e hoje quem vai pagar barato é você, passageiro do trem', grita, Anderson Dias, de 35 anos, enquanto carrega, de um lado para o outro do vagão, uma caixa lotada de cortador de legumes. Minutos depois, atropelando o discurso comercial de Anderson, entra em cena Tony da Silva, 28, com o pião brilhante da Galinha Pintadinha. Ele pede a atenção de todos e lança o brinquedo no chão para demonstração.
“Um é R$ 3 e dois é (sic) R$ 5. Vai na caixa e ainda coloco no saquinho”, avisa o ambulante. Anderson e Tony são apenas dois no meio de 10 mil vendedores irregulares que circulam diariamente nos trens, como mostra a segunda reportagem da série iniciada ontem pelo DIA. Apesar das ações de repressão, a SuperVia admite que não consegue controlar o comércio informal e até reconhece o serviço como sendo de utilidade para seus usuários.
É no ramal de Japeri, que Francisco Lima, 45, conquista seu ganha-pão. Sua rotina de trabalho vai das 10h às 14h, e, no dia de bom movimento, ele arrecada R$ 200. No fim do mês, com 80 horas de trabalho, seu salário chega a R$ 4 mil. “Criei dois filhos e cuido da minha casa com o dinheiro que o trem me dá”, declara Francisco. Seu uniforme é digno de um profissional de negócios. Com calça e blusa social, o microempresário dos trilhos faz questão de levar variedade para seus clientes. “Há meses em que mudo de produto três vezes. Agora, a moda é vender lanterna de LED”, conta.
E quando o produto é a alegria, a dupla de palhaços Cachoeira e Moleza lidera as vendas. No balanço dos trilhos, eles fazem malabarismo, cantam, dançam e arrancam gargalhadas dos passageiros. “Ganhamos uns trocados, mas a recompensa maior é a interação com o povo”, conta Carlitos Cruz, 25, o Cachoeira.
“Tem gente que gosta tanto que até levanta para brincar”, completa Moleza, interpretado por Diogo Maroge, 22. Da lanterna ao biscoito, passando por canetas e CDs, o mercado informal nos trens está cada vez mais variado e menos acanhado, graças à vista grossa que a SuperVia tem feito aos camelôs.
Desde 2012, quando a concessionária firmou convênio com seis empresas para oficializar as vendas, apenas 160 optaram pela legalização. “Se combatemos os ambulantes, recebemos queixa dos passageiros. Até fazemos ações de combate, mas sabemos que temos que conviver com 10 mil pessoas que vivem disso. É serviço de utilidade e, por isso, mudamos nossa postura”, declara o presidente da SuperVia, Carlos José Cunha.
Pai de todos os vendedores
Há 66 anos, Devanir de Oliveira faz a mesma rotina: pega o trem em Realengo, às 8h, e, até 13h, dá seis viagens no ramal de Santa Cruz. Por dia, o vaivém nos trilhos soma em média 200 quilômetros, o equivalente à distância entre Rio e Campos, no Norte Fluminense. “Já era para eu ter conhecido o mundo de tanto que ando de trem”, brinca um dos ambulantes mais antigos do sistema ferroviário.
Em outras épocas, Devanir aguentava mais o trampo. Passava o dia inteiro circulando em vários ramais. Não almoçava, só fazia lanches. “Comia o biscoito que vendia, mas voltava para casa com uma boa grana. Não sobrava mercadoria”, relembra. Hoje, com as limitações de seus 74 anos, a prioridade do trabalho é dar conselhos. “A garotada acha que é fácil trabalhar no trem. Muitos me procuram para saber como é a realidade. Eu sou sincero. Digo que o dinheiro só vem para os que gostam de trabalhar”, orienta.