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Por Ricardo Cravo Albin

O Carnaval carioca está e estará sempre em mutação. Nem poderia mesmo ser diferente, porque movido por um combustível de altíssima potência, o povo desta cidade. O povo reinventou há poucos anos os folguedos de rua, transformando o Rio do silêncio e apenas voltado para as escolas de samba em um alarido, ou melhor, na explosão de ruas e avenidas.

Portanto, os cariocas sabem rodar a manivela do tempo, dos sentidos, do sorver a vida. Mas também sabem protestar, dizer não. Prova disso de ir ao encontro das aspirações da cidade e do país as escolas de samba deram este ano.

Eu acompanho os desfiles desde a apoteótica Chica da Silva do Salgueiro, em 1963. Já vi de tudo: de adesões subservientes à ditadura até a rabugice de enredos patrocinados (mais, ou menos, envergonhados).

Também registrei no coração alguns gritos históricos de protesto nas escolas. Evoco aqui alguns enredos da Caprichosos de Pilares (anos 70 e 80). Ou a beleza e magia do Império Serrano, de Silas e Mano Décio, com o hoje mítico 'Heróis da Liberdade': "esta brisa que a juventude afaga, esta chama que o ódio não apaga", recado à ditadura em altíssimo nível poético.

Este ano, boa parte das escolas se dividiu. Quase a metade aderiu à indignação popular. As duas primeiras colocadas puseram literalmente a boca no trombone, epa, nos tamborins. O Tuiuti escola do meu coração desde o Cravo de Ouro (enredo de 2007) foi tão contundente e bela no protesto quanto a Beija-Flor. Esta empregou o recurso de teatralizar as alas. Aliás, caminho um tanto perigoso, porque o samba no pé, fundamento de essência da dança, fica quase anulado.

Quero refletir sobre mais dois aspectos. A divisão entre samba e teatro, entre escolas de protestos e escolas de não protestos. Ou seja, uma possível dicotomia a sinalizar outra guinada, na criatividade da arte popular. Ano que vem, anotem, tanto a teatralização de alas, quanto os enredos de protestos deverão proliferar.

O outro aspecto que devo abordar. Martinho da Vila cumpriu 80 anos no momento em que a Vila desfilava. O Instituto Cravo Albin reivindicou à Riotur que a cidade do Rio prestasse uma reverência formal (pelo microfone da Passarela), ao compositor, cantor e escritor. E por quê? Por ser Martinho o único mito vivo a desfilar desde 1966. E a ter celebridade dentro e fora do país.

Sugerimos até frases, insistimos em todas as instancias com a Riotur. Mas a palavra oficial da cidade não veio. Pairou o silêncio.

Restou, para mim, a amargura de comprovar que a memória, o reconhecimento, a exaltação de esforços de toda uma vida, não são considerados pelas autoridades da cidade.

Portanto, a Mangueira não deixa de ter razão ao pintar o alcaide com cores tão fortes.

 

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