Por Cássio Novo Geógrafo e pesquisador

Rio - É inverno. Ainda assim, avançando em ondas, há dias em que o calor assola a Cidade Maravilhosa. Irradiando-se em ondas incessantes, o burburinho que agita a comunidade do samba e do carnaval trata de um assunto poucas vezes associado aos festejos momescos: morte.

Além da lamentável perda do mestre Paulão discute-se também o possível fim das alas dos compositores. Isso porque, nas últimas semanas, vários canais noticiavam a suspensão, por quatro agremiações, da tradicional disputa de sambas de enredo. Paraíso do Tuiuti e Acadêmicos do Grande Rio encomendaram as obras aos já habituais - e sempre contestados - escritórios. A São Clemente recupera um samba antigo, enquanto o Império Serrano confirma que irá desfilar ao som de um samba composto por Gonzaguinha.

Em questão, a permanência de um importante espaço de criação, circulação e difusão de conhecimentos, afetos e saberes vinculados ao nobre ofício de compor e entoar sambas de enredo.

Se as disputas forem sendo canceladas é preciso perguntar: quantas obras, de diversos compositores, deixarão de circular em ondas sonoras repletas de suingue, cadência e compasso pelas quadras, terreiros e casas de bamba de toda a cidade?

Mais do que impedir a circulação dessas ondas, a atitude de encomendar sambas parece oferecer (mais) um cala-boca em um dos fundamentos mais tradicionais de uma escola de samba. Repositório de memórias, histórias e da identidade sonora das agremiações, as alas de compositores também possuem papel político de fundamental importância histórica no cotidiano das escolas. Ali também se oferecem oportunidades de conhecimento e desenvolvimento artístico e econômico aos jovens (e não tão jovens!) compositores, intérpretes e ritmistas.

Além disso, a disputa de sambas promove, anualmente, intensa circulação de pessoas, encarrega-se de encher baldes de cervejas, produzir belas melodias e oportunizar vivências de sonoridades diversas dentro das quadras.

Apesar do alto custo envolvido nas disputas (em um modelo que se tornou insustentável e, verdade seja dita, contribui para a opção pelo cancelamento das escolhas) esse período do ano movimenta cultural, social e economicamente o Povo do Samba, suas comunidades e o entorno dos lugares onde se reúnem aos seus torcedores. É fenômeno anual que se derrama, como ondas vagueando pela malha urbana fluminense, inundando nosso estado de sambas que, em sua imensa maioria, morrerão antes mesmo de pisar na avenida (mesmo assim, cooperam para a nobre função de tornar mais rica a vida da festa em suas variadas etapas a cada ano).

Nas ondas do tempo, a polêmica em torno dos sambas encomendados redimensiona a recorrente discussão acerca da supremacia do visual sobre o "chão" da escola. A ausência das disputas de samba nas quadras enfraquece o coração das escolas de samba: onde antes a vida do sambista encontrava a alma da escola, de onde o samba irrigava, de vida e som, o organismo vivo e em evolução que é uma agremiação, agora ouvimos o silencioso desfile de um cortejo fúnebre.

Uma profusão de sambas encomendados ou reeditados indiscriminadamente, assim como a insistência em fazer desfilar outras composições na cadência do samba, cooperam para amplificar a ausência de novos arranjos, o enfraquecimento das raízes das escolas e o triste fim da harmonia em nosso carnaval.

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