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Por O Dia

Rio - Vou contar uma história. Há mais de mil anos (860-932 DC) um médico persa chamado Rhazes descreveu os sintomas de uma doença letal. A doença era causada por um vírus (embora Rhazes não soubesse disso) que até o ano de 1963 mataria mais de 2 milhões de pessoas, em média, por ano. Hoje, estima-se que, entre 1855 e 2005, esse vírus tenha matado por volta de 200 milhões de pessoas em todo o mundo.

Por alguma razão, desde 1963, o número de mortes e de pessoas afetadas por esse vírus diminuiu gradativamente. Em 2016, foram 89.780 mortes, cerca de 1,9 milhão a menos do que antes de 1963. O que será que aconteceu em 1963 para que o número de mortes tenha diminuído tanto?

Então, vou contar outra história. Em 1954, um vírus foi isolado de David Edmonston, um garoto de 13 anos. O vírus foi modificado, e, em 1963, John Enders e colaboradores produziram uma forma de prevenir a contaminação pelo micro-organismo. O processo foi aperfeiçoado em 1968 por Maurice Hilleman e outros colaboradores.

Agora imagino que o leitor tenha percebido que o vírus era o mesmo em ambas as histórias. O tão citado vírus é o que leva a pessoa a adoecer de sarampo. A mesma doença da qual a maioria dos brasileiros mais jovens nem se lembra, nunca viu um caso, não conhece ninguém que teve ou muito menos que morreu de sarampo.

Então vamos para a última história. Havia uma população que conhecia pessoas com a doença, inclusive crianças que morriam do mesmo mal. Essa população tinha acesso a uma forma de prevenção que durava a vida toda e ainda era dada gratuitamente pelo governo.

Com essa prevenção, os filhos e filhas não pegaram nem conheceram (e muito menos morreram) de sarampo. Fim da história?

Infelizmente, não. Ainda existe sarampo no mundo e a maioria dos casos ocorre na África e Ásia. No entanto, ainda está presente na América do Norte e do Sul, Europa e Oceania. Pessoas de todos esses continentes vêm ao Brasil, aumentando o risco de contágio.

Sarampo é extremamente contagioso porque a transmissão se dá pelo ar. Pessoas infectadas (algumas sem terem o diagnóstico) poderão chegar ao Brasil. Se a população não estiver vacinada, infelizmente o leitor poderá conhecer o sarampo e suas consequências, incluindo até mortes pela doença.

Diferentemente do que acreditam alguns, a vacina não causa autismo ou outras enfermidades. A chance de efeitos colaterais é mínima e muitíssimo menor do que o risco de ficar vulnerável ao vírus sem a imunização.

Como a maioria dos leitores, fui vacinado contra sarampo quando criança, o que agradeço muito aos meus pais. Também como a maioria de vocês, nunca vi um caso no Brasil, mas já vi centenas na África e Ásia, onde trabalhei com Médicos Sem Fronteiras. São lugares onde, infelizmente, muitos pais e mães não têm a oportunidade de vacinar seus filhos, mesmo com a vacina custando menos de R$ 4 a dose. Vi também muitas mortes por sarampo e sou testemunha de que o perigo é real.

Neste ano, o aumento de pessoas com o vírus no Brasil fez com que as autoridades intensificassem as campanhas de vacinação. No Rio de Janeiro, a meta de imunizar 95% da população alvo não foi atingida inicialmente, e o prazo acabou sendo estendido por três vezes, até que o objetivo pudesse ser alcançado.

Vacinar os filhos e oferecer a mesma proteção que recebemos dos nossos pais é, sem dúvida, o melhor caminho, e não podemos deixar que a memória já remota ou inexistente dessa doença letal seja justificativa para que não atuemos de maneira responsável. A conta é simples e os números falam por si: em todo o mundo, estima-se que a vacina contra o sarampo evitou 20,4 milhões de mortes entre os anos de 2000 e 2016. Não podemos deixar a doença voltar.

Paulo Reis é médico de MSF-Brasil

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