A deputada Talíria denuncia: “Desde que tomei posse, fui barrada TODOS OS DIAS aqui – na entrada, no elevador, no plenário. Eu uso broche e vou às sessões, como todo parlamentar. É difícil pra eles entenderem, mas nós, mulheres pretas, somos tão deputadas quanto os outros. Não aceito esse tipo de tratamento”.
Certamente a deputada não é barrada no acesso ao plenário da Câmara dos Deputados porque é mulher ou preta. Mas, porque tem cara de povo e deve se orgulhar disto. No 26º ano na magistratura, de vez em quando sou igualmente barrado no Tribunal de Justiça. Basta que mudem o segurança da portaria.
Voltando de férias e com a barba por fazer, entrei num ‘elevador privativo de magistrados’ juntamente com um desembargador nomeado pelo ‘quinto constitucional’ que mal sabia o corredor que levava ao seu gabinete. Direito, o infeliz não sabe até hoje. Mas, ganhou o cargo do governador. Um quinto dos tribunais estaduais é composto por desembargadores nomeados pelo governador, sem concurso. Algumas boas nomeações servem como justificativa para a manutenção do critério. Os demais são desembargadores por promoção de juízes de carreira, concursados. Ao retornar ao elevador, o ascensorista, constrangido, perguntou-me se eu era magistrado, pois havia sido repreendido pelo ‘desembargador janelado’ por ter permitido acesso de quem “não tinha a prerrogativa de entrar naquele elevador”. Identifiquei-me ao ascensorista e lhe sugeri dissesse ao desembargador, quando o encontrasse, que havia ouvido de mim que eu era magistrado “e dos concursados”. Mais tarde, sorridente, o ascensorista disse que o fez.
A cena se repete de vez em quando, notadamente quando estou sem terno ou sem gravata. E fico muito feliz. Tenho a sensação de que ainda não fui afetado pela empáfia que caracteriza certos ocupantes de cargos da burocracia do Estado. Continuo cidadão, olhando o mundo pelas lentes daqueles que deveriam ser os destinatários da justiça. A dignidade está no exercício das funções próprias do cargo, não nas mesuras típicas dos tratamentos provincianos em relações despidas de conteúdo capazes de lhes atribuir excelência.
Magistrados e magistradas, negros ou negras, que se caracterizam pela arrogância – e nos tribunais os há – não são barrados por seguranças igualmente negros ou negras. A questão não é apenas de gênero ou raça. Está, sobretudo, no diferencial de classe. Não é o fato de ser negra ou mulher que causa a interceptação da deputada Talíria na Câmara dos Deputados. É sua cara de povo. Se vestir um tailleur Chanel, colocar jóias e portar uma bolsa Louis Vuitton, Prada ou Gucci será tratada como a outra deputada, igualmente mulher e negra, que nunca foi barrada e já foi chamada de ‘Rainha de Sabá’.
Talíria, o dia que não a barrarem, esteja certa de que o segurança já a conhece ou você terá mudado de lado e deixado o lado do povo. A outra possibilidade seria termos conseguido transformar o Brasil numa república de verdade. Eu detestaria receber tapete vermelho, mesuras, rapapés e salamaleques quando me aproximasse das portarias; não gostaria de ser confundido com os recebem tais reverências. Prefiro ser barrado. Sinto-me humano, ocupante de um cargo cujas funções desempenho com responsabilidade, mas que com ele não me confundo.
João Batista Damasceno é juiz de Direito e doutor em Ciência Política