Ricardo Cravo Albin - reprodução
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Por O Dia
Rio - Costumo ser habitual leitor de poesia e literatura, a par dos trabalhos como dicionarista da música deste país inter-racial. Portanto, desculpo-me pela possível ironia do título desta crônica, confrontando Chico Buarque com Luiz de Camões. Só que se trata de um jogo de palavras a que não resisto.

O bardo português é o maior poeta da língua desde sempre. Enquanto o letrista brasileiro é o mais completo intelectual de nossa música popular. E por que Chico é Camões em 2019? Porque o Prêmio Camões é o mais importante tributo literário a contemplar os escritores de língua portuguesa. O laurel cumpre 31 anos de existência, e exalta a fina essência da literatura lusófona. O primeiro brasileiro a recebê-lo foi João Cabral de Mello Neto (1990) e o último, Raduan Nassar (2018).

O Júri deste ano acertou em cheio até pela qualidade de seus integrantes, que, permitiam-se, eu resumiria no poeta e filósofo Antonio Cícero, também letrista do cancioneiro do Brasil.

De mais a mais este prêmio faz aflorar uma antiga polêmica em que pessoalmente me envolvi dezenas de vezes, sobremodo em academias e universidades (até estrangeiras). O letrista da canção brasileira é considerado poeta?

A resposta afirmativa chegou, demolidora, com o Prêmio Nobel de Literatura do ano passado ao músico e letrista americano Bob Dylan.

Nesta última semana, o Nobel português, o Camões, exalta o talvez mais eloquente letrista da talvez mais robusta música popular da latinidade, a do Brasil, cuja essência literária se encontra justamente na letra. Aí está o nosso Vinícius de Moraes, a resumir a refinada literatura de centenas de grandes poetas da MPB.
Dylan conquistou o Nobel pelas letras de sua música. E só por isso, eu avalio. Já Chico recebe o Camões pelo conjunto radioso de suas canções, que penetraram fundo nas mentes e corações da lusofonia, e não apenas em nossas fronteiras. Como, aliás, o júri assinalou com propriedade. Mas não somente pelo poeta-letrista (insisto na união dos dois substantivos), senão também pelos livros e peças teatrais. Amplíssimas referências da melhor literatura contemporânea. Como os romances Budapeste ou o recente Leite Derramado. O que dizer da contribuição das peças Roda Viva, Gota d’água e outras tantas?

As mais de trezentas letras de Chico e seus livros levarão à Lisboa em setembro o nosso escritor, este Corifeu do Brasil. Ali, ele receberá o legado de Camões, acolitado pela não desprezível quantia de cem mil euros.

Todas as bandas desfilarão frente ao premiado, todas as carolinas se postarão às janelas, todas as cruéis construções de súbito se erguerão, todas as modinhas e fados tropicais serão entoados. Enquanto um bando de sabiás regurgitará a canção de exílio não compreendida em 1968 pelo Maracanãzinho, alternando a algaravia da quase valsa com os semi marciais Apesar de Você e Vai Passar. Todos os Sergios, Mariamélias e Miúchas ressuscitarão. Tudo e todos comparecerão. Para ver o Chico passar.

Ricardo Cravo Albin é presidente do Instituto Cultural Cravo Albin