Na inundação, árvores também foram salva-vidas inesperados. As pessoas se abrigaram nos seus galhos enquanto as águas subiam acima dos telhados, para esperar por um resgate que muitas vezes nunca chegou.
Depois de nadar desesperadas em rios recém-formados onde antes ficavam casas e plantações, pessoas me disseram que a sobrevivência não foi consequência de coragem ou bondade, mas do acaso cruel de um galho ao qual foi possível se segurar.
O lago de águas paradas perto de Lamego foi testemunha de muitas mães que ralhavam com seus filhos por matarem aula para nadar no rio. As mães que, ao final, se afogaram, enquanto seus filhos e filhas, que a prática tornou excelentes nadadores, conseguiram se salvar. Eram, entretanto, pequenos demais para salvar os pais.
No mar de lama no qual se transformaram algumas áreas rurais, vejo gente cavando para tirar do solo coisas essenciais invisíveis aos meus olhos: fotos de família, uma camiseta, o espelho favorito de alguém.
Caminhando para o centro de saúde de Nhampoca, sou parada por dois idosos: “Será que a doutora pode ver algo conosco?”
Tiro meus instrumentos médicos da mochila, mas quando chego ao leito do rio surpreendo-me com a seriedade de um grupo de homens dispostos em círculo. Abro caminho gentilmente entre eles e vejo na lama detalhes que me esclarecem a história: um vestido de mulher que já foi colorido, agora marrom e pálido, suas mãos flácidas descoloridas pela água do pântano.
“Cheguei tarde demais, chegamos tarde demais. Sinto muito. Não posso ajudar”, digo, num desabafo.
Eles assentem em silêncio. Só queriam que ela tivesse a dignidade de ser vista. Digo a eles que vou contar isso para outras pessoas, mesmo que eu não saiba o que quero dizer com isso. Vou contar.
As cheias levaram os pertences das pessoas – mosquiteiros e roupas – tornando-as ainda mais vulneráveis a mosquitos que agora procriam livremente nas poças de água.
Uma menina, que parece muito mais velha que seus 9 anos, senta ao meu lado com os dois irmãos mais novos. Todos têm malária, então pergunto pela mãe deles, para explicar o tratamento e prevenção. O promotor de saúde me diz com delicadeza que eles não têm mais mãe. “Há outros na mesma situação”, explica.
Enquanto as águas estão baixando, as árvores continuam contando histórias. “Foi lá que eu me agarrei por quatro dias”, diz um idoso em Nhampoca. “Esta árvore salvou minha família”.
Para Chipendo, um enfermeiro de um centro de saúde, a salvação não veio de um resgate de helicóptero, mas da coragem de pescadores que usaram o tronco de uma árvore como canoa e o resgataram, arriscando as próprias vidas na correnteza. Ele passou dois dias sem comida, segurando-se em um galho.
Quando brotos começam a reaparecer nas plantações em Nhampoca, penso em todas as histórias de coragem, força, resiliência e generosidade que ouvi dos que sobreviveram ao ciclone. Mas também da memória daqueles que se foram lutando por suas vidas.
Neste momento frágil e vulnerável de recuperação, enquanto os moçambicanos remendam vidas, famílias e lares, eu ando por uma estrada de terra voltando do centro de saúde e dou uma última olhada na água parada da enchente. Grandes plantas aquáticas começam a crescer. E, pela primeira vez na água barrenta, eu vejo flores.