Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por O Dia
Rio - Eu acordei bem. Tenho certeza disso. Acordei e fui viver. Não que não se viva dormindo. Uma noite de sono, sem intranquilidades, é um perfume na alma. Que deixa um cheiro bom no desenrolar do dia.

Acordei e percebi que não havia pagado uma conta que me olhava da cabeceira. Esquecimentos que antes eu não tinha. E justo agora que tudo está tão contado. Faço os cálculos da multa e dos juros. Tenho uma raiva leve. Olho para os desatinos do celular. Algumas mensagens vão se avolumando. Começo a tentar desfazer o novelo. Um amigo pergunta se já acordei. Não respondo. Estou preocupado com outra mensagem que me cobra uma resposta que ainda não tenho. O amigo insiste e diz que está vendo que estou online. Eu tento não me aborrecer e sigo no que faço ou no que deixei de fazer. Outro esquecimento.

O amigo me liga. Atendo e explico que estou preocupado com uma mensagem e que, em pouco tempo, retorno. Tempo é o que me falta. Ele diz compreender e fala compulsivamente para explicar que aguarda o meu retorno. Tento desligar algumas vezes, mas ele prossegue em sua ânsia interminável de dizer.

Olho o horário e me vejo atrasado. O banho terá que ser rápido. Não consigo responder nada. Visto a roupa que consigo e parto cheio de cobranças. Resolvo ir caminhando e lendo e respondendo as mensagens. Súbito, um furto. Alguém de bicicleta piora o meu dia. E lá se vai o meu celular. Estava na segunda prestação de 12. E lá vou eu buscar ajuda para bloquear o celular. E o atraso aumenta. E meu chefe não é dos mais compreensivos.

Vou à loja da operadora. Fila. Explico a mesma história várias vezes. Perco a manhã. Compro o mais básico dos celulares. As mensagens não respondidas não estão chegando. Ué, estava tudo nas nuvens. Quisera eu estar nas nuvens dormindo um sono sem solavancos. No celular novo, o amigo da manhã me liga e diz alguns impropérios, porque eu havia dito que ligaria logo em seguida. Resolvo nada explicar e desligar o telefone. Meu chefe me olha. Eu não me olho. A frase que ele consegue dizer é: "Preciso dizer mais alguma coisa?". E eu olho ao longe, exaurido. O telefone toca. Ele acena com a cabeça querendo que eu me lembre de que ele tem pavor de toques de celular. Que é preciso deixar no silencioso.

Preciso de silêncio. No celular, o número da minha mãe. Saio de perto dele e atendo. E ela me cobra. No dia anterior, foi aniversário de um tio e eu me esqueci. E ela me pede um favor. Minha mãe demora a concluir uma narrativa. Me perco em outros pensamentos. E, desatento, digo que já ligo. Liga, novamente, o amigo. Não atendo.

Na minha mesa, os papéis se engalfinham. Prometi à minha namorada que sairia mais cedo. Como? Se eu ligar para contar tudo, o tudo que tenho para fazer não será feito.
Sento diante do meu computador. Tento me concentrar. O computador trava. Peço para que alguém da manutenção me ajude. Não há ninguém. Foram fazer um curso. O curso do dia está indigesto. Nada comi e, mesmo assim, não paro de ir ao banheiro. Uma certa tontura me atormenta. Não posso nem pensar em ir para casa.

Mensagem da minha namorada, ligação da minha mãe, mensagem do meu amigo aborrecido. Resolvo não ler nada. Resolvo fechar os olhos para respirar sem incômodos. "Está dormindo?", é a voz do meu chefe. Apenas abro os olhos. Olho para ele. Abro a gaveta. Pego a chave de casa. E parto.

Não sei o que vai acontecer depois. Só sei que não consigo. Sou um homem de paz. Mas ainda não aprendi a ter paz no caos.

Na rua, um atropelamento. Uma senhora caída. Tudo em mim se transforma. Eu me transformo e saio em seu socorro. Paro o trânsito. Ligo para o resgate. Acaricio sua face. Impeço que ela se mova. Converso com ela. Devolvo a paz que algum apressado dela retirou. E nos tornamos cúmplices em sorrisos. Os seus olhinhos azuis me trazem o céu limpo em um dia tão sombrio. Suas rugas me despertam respeito. Quanta história há por ali.

Vou junto com o resgate até o hospital. Esqueço o resto e fico feliz em poder cuidar. O telefone vibra no meu bolso sem descanso. E eu já não me importo. Depois eu vejo. Quando os filhos chegam, ela me agradece com os olhos marejados. Dona Vitória é o seu nome. Ela pede que eu fique um pouco mais. E que a acompanhe em sua casa. Quer me agradecer de alguma maneira. Mal sabe ela o bem que me fez.

Já ouviram falar em dores que ganham asas e voam pra longe? A experiência do cuidar é reveladora. Com a compaixão, a paz.
Gabriel Chalita é professor e escritor