João Batista Damasceno, colunista do DIA - Divulgação
João Batista Damasceno, colunista do DIADivulgação
Por João Batista Damasceno*
Todas as notas de um jurado que sambou o samba de uma das escolas que ele avaliava foram invalidadas. Para a Liga das Escolas de Samba o principal requisito exigido de um julgador é a imparcialidade. No Brasil estávamos nos acostumando com práticas corruptivas no funcionamento institucional a ponto de não percebermos vicioso o ajuste de magistrado com membros do MP sobre testemunhas a arrolar, avisos sobre prazos e organização de operações policiais. A violação abusiva de comunicação telefônica e divulgação por quem tinha o dever de manter sigilo profissional, se a interceptação tivesse sido legal, foi exemplo emblemático de que a lei não é para todos, porque não houve responsabilização.

O desrespeito à Constituição e ao ordenamento jurídico por quem tinha o dever de lhe ser fiel e a ausência de consequência pelas violações aos direitos fundamentais abriu a porteira para que os senhores da truculência se sentissem autorizados ao pleno desrespeito ao Estado de Direito e à democracia. A Liga das Escolas de Samba deu uma lição que deveria valer em todo o ano e em todas as instituições: vale o que está escrito. A Constituição também deveria valer pelo que nela contém.

Ulisses Guimarães, na promulgação da Constituição em 05 de outubro de 1988, disse que: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar sim! Divergir, sim! Descumprir, nunca! Afrontá-la, jamais! Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: Rasgar a Constituição, trancar as portas do parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério! Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina”. Ulisses guiou o povo para a liberdade e, tal como Moisés, seu corpo não foi encontrado.

Durante a ditadura empresarial-militar o presidente nacional da OAB foi chamado de interlocutor da sociedade civil com o governo. Tal interlocução atestava o divórcio entre a sociedade civil e o Estado que deveria ser a expressão dela. Neste cenário sombrio, enquanto o palhaço convoca golpe os donos do circo contabilizam os lucros, tal como fizeram em tempos passados nos quais financiaram grupos de repressão. Neste carnaval, não tivemos apenas uma lição sobre imparcialidade. Tivemos também enredos exaltando a fraternidade e a cultura enquanto agentes do Estado exaltam a truculência, a ignorância e a ditadura. A campeã no Rio com o enredo "Viradouro de alma lavada" tratou do grupo das Ganhadeiras de Itapuã, quinta geração de mulheres que lavavam roupa na Lagoa do Abaeté e faziam outros serviços em Salvador em busca da compra de sua alforria. A Unidos da Tijuca homenageou Evando Santos, o pedreiro que montou o Centro Cultural e Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, no Largo do Bicão, e, com doações, ajudou a criar bibliotecas comunitárias pelo Brasil. Num dos carros alegóricos estava Francisco Olivar Vavá, um livreiro de rua que fica na saída do Metrô da Carioca, e aos sábados na Praça 15, ajudando na difusão da cultura do livro. O carnaval serviu para documentar o divórcio entre a sociedade e as instituições, a distância entre a beleza da cultura popular e a ignorância truculenta que nos governa, bem como o conflito inconciliável entre o mundo do trabalho e o mundo do capital.
*João Batista Damasceno é juiz