Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Deus sabe o sacrifício que fiz para me formar. Nasci em uma das franjas desta grande cidade onde só não falta amor. Explico. Sou filho único de uma mãe que não teve tempo de ver a passagem do engatinhar para os primeiros passos. Foi ela tão jovem. O que sei é o que meu pai conta, é o que vejo na foto já esmaecida, é o que imagino. Conto histórias da minha mãe como se as tivesse vivido. Meu pai não teve mais filhos. Ele se casou mais uma vez e, mais uma vez, enviuvou. Mora sozinho, hoje. Decisão dele. É ele bravo o suficiente para prosseguir como quer.

Minha história não é diferente de tantas que romperam a bolha da pobreza e alcançaram algum lugar. E como é difícil romper essa bolha. Desde sempre, quis ser médico. Imaginava que, se minha mãe tivesse um bom médico, não teria morrido. Imaginava muito na minha orfandade doída de uma infância com pouca cor. Sozinho em casa, inventava personagens. Brincava de cuidar dos poucos bonecos que tinha. Explicava a eles o que fazer para sanar as doenças.

Meu pai trabalhava dirigindo ônibus. Despertava antes do dia e voltava extenuado para casa. Era bom o seu abraço da chegada. Na escola, riam de mim, quando eu dizia que seria médico. Sim, há muitos que se ocupam da infeliz tarefa de tentar abortar os nossos sonhos, antes deles nascerem. Fui forte o suficiente para não autorizar. E prossegui. Lembrando as tantas mães que, prematuramente, partiam sem ter um médico para lhes devolver um pouco de vida, para lhes conceder o privilégio de ver os primeiros passos dos seus filhos.

A mulher com que meu pai se casou não concordava comigo. Dizia que é Deus que decide o dia que as pessoas morrem e que médico nenhum pode interferir nisso. O Deus que eu acreditava desde criança era diferente do Deus dela. O Deus que acredito é o que nos criou inteligentes e livres para que fizéssemos a nossa parte. Fiz a minha e, com os pés ousados, passei no vestibular da faculdade de medicina. Com as mãos corajosas, recebi o diploma de médico alguns anos depois e, com os olhos fitos na generosidade, comecei a salvar vidas.

Meu pai, meu bom José, acompanhou tudo. E chorou o choro dos que cultivam a esperança. Nunca me desestimulou. Sonhou comigo. Riu comigo das minhas invencionices infantis. Chorou as minhas dores de medo. Abraçou os meus sofrimentos, mesmo cansado dos seus. Ainda hoje, fala de mim com olhos marejados: "Meu filho é um médico, um doutor". E lasca histórias e mais histórias que gosto de contar para ele das vidas que salvo. Moramos na mesma rua. Pude comprar uma casa para mim e outra para ele. Ganho mais do que o necessário para termos uma vida com os confortos materiais de que precisamos. Mas o que me desconforta, hoje, é um vírus. Um vírus da separação. Cuido de tantos e não posso beijar o meu pai. Aperto tantas mãos e as mãos mais preciosas que, por primeiro me ensinaram a caminhar, estão sozinhas.

Prudentemente, deu ele férias à mulher que o ajuda. Melhor que ela fique em casa com os seus. Consegui lhe explicar como se usa o vídeo do celular. E assim temos feito. Acordamos cedo, os dois. Arrumo um café como posso, e ele faz o mesmo. Pelo celular, nos vemos e conversamos. Ele se perde, às vezes, e nos perdemos de ver. Eu explico. Com prazer. Quantas vezes esse homem me explicou a bondade na minha vida?! Coloco uma música ao fundo e sorvemos a quentura do café. E a conversa amorosa entre pai e filho.

O dia, gasto no hospital. Ele me espera à noite para nos vermos como nos é permitido pela prudência. Ontem, ele me perguntou quanto tempo esse vírus iria permanecer, me mostrou suas preocupações com os que não têm como se cuidar. Chorou, lembrando o bairro pobre em que vivemos. Como estarão se ajeitando? Se pudesse pinçar uma qualidade do meu pai, do meu bom José, diria, "É um homem que pensa nos outros e que, com os outros, se importa".

Expliquei que vamos sofrer, mas que vamos vencer mais essa dor. Ele, levando a mão ao coração, como se tentasse abafar o seu medo, pediu que eu tomasse cuidado, que eu era tudo o que ele tinha. E chorou. E, sem que eu antes respondesse, prosseguiu dizendo que Deus protege quem aos outros protege.

Acreditamos, ele e eu, no mesmo Deus. No que respeita as escolhas dos homens, mas que os ilumina quando se abrem para a sua luz.

Que a escuridão da separação, do confinamento, ajude as pessoas a caminharem dentro delas mesmas. Caminhos difíceis de serem percorridos. A preguiça esconde o belo. E que, quando novamente pudermos dar as mãos, saibamos valorizar o prazer do caminhar acompanhados.

Dia 19, dia de São José, meu pai fez aniversário. Pela primeira vez, não nos abraçamos. Nossa festa foi nos sentimentos. É assim que tem que ser. O amor é responsável.

*Gabriel Chalita é professor e escritor