William Douglas - Reprodução
William DouglasReprodução
Por O Dia
Rio - Este é o segundo artigo sobre o problema da intervenção inadequada de operadores jurídicos em políticas de enfrentamento à pandemia. Inicialmente, renovamos a crença na boa-fé dos advogados, defensores, membros do Ministério Público e Juízes e o registro de respeito à autonomia e independência de cada um. O problema é que os operadores jurídicos também precisam respeitar a autonomia, a independência e as funções dos demais Poderes da República. Por fim, não é ocioso citar que as análises são feitas na qualidade de Mestre em Direito e de Professor de Direito Constitucional, são crítica acadêmica e técnica, com vistas ao aperfeiçoamento das instituições e, em especial, a busca de soluções corretas para a crise.

A Promotora de Justiça Claudia Morais Piovezan trouxe ao debate, no artigo “O vírus da tirania”, o alerta de que: “Em diversos lugares do país, agentes públicos usam a epidemia de coronavírus para atacar as liberdades individuais e o direito ao trabalho, condenando o povo ao silêncio e à fome”, alertando que “há uma outra doença grave que está tomando conta do país”: “a doença do autoritarismo travestido de boas intenções e envolto em onipotência. Pipocam pelos Estados e Municípios, (...) agentes públicos que querem assumir o controle da nação sem terem votos. Ministério Público e Judiciário assumiram completamente o comando da crise, retirando liberdades da população, em nome ‘da defesa da vida’”.

A articulista menciona o fato notório de que agentes que não se submetem ao voto popular querem assumir o controle do Poder Executivo, pressionando prefeitos e governadores com “recomendações administrativas”, ameaçando-os de processos e também ingressando com ações perante o Judiciário buscando determinar o que pode ou não ser feito. Os servidores públicos que têm que enfrentar a Covid-19 têm, além de todos os problemas da pandemia em si, que se submeter a questionários, ordens e ameaças de agentes que, sem voto e legitimidade democrática e constitucional, querem (até de boa-fé) resolver a crise.

Um exemplo, citado por Piovezan, está na cidade de Cascavel/PR, e servirá de referência para mostrar o ativismo e excesso de atuação criticado aqui e na primeira parte deste artigo.. Em Cascavel, o Ministério Público local enviou recomendação ao Prefeito, nos seguintes termos:
"1- Abstenha-se de efetuar qualquer liberação contrária às medidas de isolamento até agora vigentes, sem que antes se tenha amplo debate no COE e suas Comissões sobre cada medida, cujas deliberações deverão se dar com base exclusivamente em evidência e fundamentos científicos, sem interferências diretas de posições econômicas e políticas;
2- Revogue imediatamente qualquer liberação já realizada desde 25/03/2020 e contrárias às medidas de isolamento até agora vigentes;
3- Abstenha-se de impor ao COE, qualquer conduta ou posição, permitindo a livre e técnica apreciação do Plano de Ação que será proposto, comprometendo-se a respeitar a posição fundamentada daquele Comitê."

Reparem, caros leitores: foi criado um COE (Comitê de Organização de Emergência) que simplesmente quer poder total (ver item 3), ao qual o Prefeito deve se curvar. Onde está na Constituição Federal a previsão de que em algum caso um tal de COE irá assumir a gestão de crise?

Ainda cabe comentar o item 1. Há hoje no país uma discussão sobre qual é a melhor direção a tomar: isolamento horizontal ou vertical. Embora os médicos em sua maioria prefiram a quarentena, há outros que sugerem solução médica diversa, o da imunização coletiva. Alguns países optaram pelo vertical, como Suécia, Holanda, Singapura, Coreia do Sul e Japão. A OMS, por mais bem-intencionada que possa estar, não detém soberania nem legitimidade democrática. Aliás, é a mesma OMS que poderia ter evitado o tamanho da tragédia se não atrasasse as medidas preventivas atendendo à pressão do governo chinês. Enfim, o básico é entender: há dois caminhos contrapostos, restando apenas saber quem é que pode escolher qual seguir. Pode haver alguma dificuldade sobre como aplicar os artigos da Constituição Federal que tratam das competências, mas não há qualquer menção a que a Defensoria, o Ministério Público, a OAB ou o Judiciário possam ser os gestores.
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Ainda sobre o item 1 da Recomendação: O MP não quer “qualquer liberação” contrária às medidas de isolamento antes de “amplo debate” no COE e suas Comissões. Ou seja, não faça nada antes de ter “amplo” debate aqui. Como se quem tem atribuição para gerir a crise tenha que substituir sua análise por aquela que virá das comissões do COE. Indo além, é dito que “as deliberações deverão se dar com base exclusivamente em evidência e fundamentos científicos, sem interferências diretas de posições econômicas e políticas”.

O Ministro Paulo Guedes, em debate público realizado no dia 28/3/2020, no canal do YouTube da XP Investimentos, para tratar das medidas econômicas contra a crise, deu explicação simples e direta. Segundo ele, temos que enfrentar duas ondas: a Covid e a recessão. Para explicar o dilema, disse que ele cuida da economia e que ela aguenta um mês e, se o Ministro Mandetta, da Saúde, disser que o ideal seriam três meses de quarentena, a equipe precisará discutir algum ponto intermediário que evite o vírus e o caos social (saques, desemprego, recessão, incapacidade de remunerar servidores e adquirir medicamentos e equipamentos de saúde etc.).
Não é uma discussão entre “vida x economia”, mas entre “vidas e vidas”. Esta é a decisão 1: quando e como migrar da solução horizontal para a vertical. Ela não pode ser meramente médica/científica, mas deve levar em conta questões econômicas também, que repercutem em vidas (comida, emprego, outras questões de saúde etc). Quem decide precisa escolher se vai seguir apenas a OMS ou também os economistas. Ir pelo caminho escolhido pela Espanha ou pela Suécia é uma decisões política do Presidente e dos Governadores, é decisão de política pública, a ser tomada por aqueles que foram eleitos para tanto.

O Ministro mencionou ainda uma segunda decisão: o Ministro Mandetta pediu para interromper as exportações de máscaras e o Ministro Ernesto, das Relações Exteriores, pediu que elas fossem liberadas em virtude das relações de amizade e respeito (e também de solidariedade) que unem Brasil e Itália, onde, anote-se, o sangue brasileiro foi vertido na 2ª Guerra Mundial. Então, uma decisão meramente “médica” segura as máscaras, ao passo que uma decisão “política” as libera, por diplomacia, respeito aos contratos e solidariedade. Quem tem que tomar essa decisão é o Presidente da República, não o promotor de justiça de Cascavel, ou, talvez, o juiz de Cascavel a quem for distribuída a ação proposta por alguém que, por quaisquer razões, prefere a decisão A ou B.

Há adágio popular que diz: “Em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”. Vivemos tempos de falta de máscaras e respiradores. Se a situação não for bem administrada, cuidando-se das colheitas e da malha logística, em breve faltará pão. Nessa hora, não podemos ter operadores jurídicos interferindo excessivamente. Pior, usando o poder da caneta e das ameaças jurídicas. Hoje temos operadores jurídicos querendo fechar igrejas (o que é diferente de ter cultos em igrejas), impedindo manifestações públicas que não impactam o risco de contágio (carreatas), pretendendo dizer ao Presidente, Governadores e Prefeitos como dispor sobre recursos médicos, e outras decisões típicas da gestão do Ministério e das Secretarias de Saúde.

Por fim, ainda há operadores que não entenderam que conceder uma liminar para que se entreguem tantas máscaras, respiradores ou leitos de UTI aqui ou ali acalma a alma de quem decide, mas não cria nada no mundo real senão atormentar ainda mais a alma de quem está na linha de frente, lidando com o vírus. “Recomendação” e decisão judicial não criam recursos materiais no curto prazo, que é o caso. Ordem judicial para fazer isto ou aquilo, em uma situação de falta de recursos, é “desvestir um santo para vestir outro”. Isso, como aliás manifestou-se o Ministro Mandetta, atrapalha mais que ajuda.
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Em paralelo, juiz não pode definir política pública. Assim, é momento de autocontenção dos operadores jurídicos e de respeito e confiança naqueles que, em cada nível federativo, se submeteram ao escrutínio popular e foram vitoriosos. Nís, da área jurídica, não podemos nos julgar deuses, acima da plebe, mais sábios e virtuosos que o povo e os eleitos, e autoritariamente pretender assumir a gestão da crise. Ter os milhares de profissionais do Direito querendo gerir o país não funciona, não é constitucional. É é arbítrio. E atrapalha ainda mais a vida de quem tem competência (nos dois sentidos da palavra) para gerir a crise.

Em resumo, por mais que haja a intenção de ajudar, não podemos ter milhares de advogados, defensores, promotores e juízes pretendendo gerir a crise e dizer como quem foi eleito deve agir. Vamos respeitar a independência dos Poderes e as atribuições de cada um.

William Douglas é juiz federal/RJ, professor de Direito Constitucional, Mestre em Direito, Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo e escritor