Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
 Certa vez, me ensinaram que, quando as noites estão agitadas, o melhor a fazer é se entreter com o belo. Peguei a foto do meu pai, olhei por alguns minutos, fechei os olhos e permiti que a lembrança dele fosse acalmando os meus barulhos.


Outra vez, olhei para a imagem de São Francisco, que me acompanha, há tanto. Olhei o tempo necessário, fechei os olhos e fiquei com aquela inspiração em mim, me fazendo revisitar histórias da bondade que tantas vezes li e ouvi.

E, assim, no despedir de outros dias , me acalmei. Até uma flor já me fez companhia. Havia recebido de alguém especial. Uma rosa aveludada. Era assim que eu a via. Tomei-a nas mãos. Olhei os seus detalhes. Fechei os olhos e aquele perfume foi me acalmando.

Hoje, revisitei o passado. Busquei no ontem a paz para abrir o dia. Era um dia, em um lago. Estávamos em poucos. Meus irmãos maiores pescavam em um ponto qualquer. E eu brincava de boiar, do outro lado. Havia uma prima que tinha medo da água e que me chamava para apenas ver. Deixei o prazer para cuidar dela. Tão pequeno e tão pronto para estar. É verdade. As infâncias só são cruéis, quando outros decidem.


O dia ainda distava do fim.
Ela tinha fome e insistiu que eu chamasse meus irmãos. Nos aproximamos. E foi aí que eu vi os peixes sendo enganados pelos anzóis e depositados em um balde com água. Vi e paralisei. Vi e fiquei imaginando, primeiro, o fim da liberdade e, depois, o fim da vida. Nada mais eu via naquele canto escondido de um interior entre montanhas. Minha prima pensava na comida. Meus irmãos na disputa de quem pescava mais. E eu refutei os pensamentos outros e, em um ato de temeridade, pois era bem menor do que eles, peguei o tal balde e devolvi os peixes à felicidade.


Hoje, rio. Naquele dia, apanhei. Corri como pude, mas meu irmão mais velho me alcançou. Guardei o choro para chorar depois. E chorei sozinho. E o choro se fez sorriso, quando lembrei o que fiz.


Foi assim que acalmei o meu dia, hoje. Aquele lago, não sei se existe mais. Um dos meus irmãos já vive onde um dia espero viver. Ele era bom. Meu outro irmão, já não me bate. Minha prima tem outros medos. E eu tenho a memória de tantos dias em que experimentei a dor e o amor.
Lembro que cheguei a sonhar que os outros peixes, da família dos peixes que quase partiram, festejaram a volta deles ao convívio.

Sonho, hoje acordado, que ninguém se acostume com as crueldades. O bom é se entreter com o belo. Causamos machucaduras a outros. Infelizmente, temos esse poder. Mas, também, temos um outro, o de esvaziar o que esvazia a liberdade. Não perdemos a liberdade, quando estamos em casa. Perdemos a liberdade, quando não podemos nos lembrar de bondades. Os perversos nunca saberão o que é ser livre. Enfeiam suas vidas com tramas estranhas, que teimam em pescar, das outras vidas, a paz.

Um dia, disse "não" a um homem poderoso que me queria a seu lado. Ele e os outros se assustaram. Como alguém pode dizer "não" ao poder? Como alguém não se fascina pelas glórias e honras que há de receber? Só sei que olhei para o futuro e imaginei as variações de humor, os gritos de ordem, as exigências infundadas daquele tal e disse "não".


Sou das leituras e sou das observações. Quando penso nas antigas cortes com os seus tiranos, sempre concluo que os camponeses eram muito mais felizes do que os ministros que nunca sabiam o que haveriam de encontrar.

Viver os cheiros da natureza é mais belo do que se esbaldar na comida dos barulhentos.
Em mim, encontro o lago e as travessuras de uma infância feliz. Fecho os olhos e agradeço. Os choros existiram, mas não roubaram de mim quem eu sou.
*Gabriel Chalita é professor e escritor