Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
O frio chegou à minha alma. E não é de hoje. Hoje, sou tomada pelo medo de que alguma coisa aconteça com eles. Tudo o que vejo faz aumentar meu tremor. O racismo é praga que não morre. É isso o que sinto nesse frio.

Sou uma mulher negra que canta a vida com alegria. Superei desprezos com amores, encontrei espaço para não andar abaixada, gritei o silêncio dos que prosseguem. E sei que, no mundo em que vivo, posso respirar o ar do respeito. Mas há vários mundos. Há um indecoroso mundo de grandalhões que se vestem de uma pureza imunda e que se julgam superiores.

Não falo de ontem. Dos horrendos tempos de escravidão. Das lutas sangrentas por direitos. Falo de hoje. Meu filho tem 14 anos. Idade daquele lindo menino que teve seu futuro roubado por tiros de insanidade. Meu marido tem a idade de outro que teve a respiração roubada por um joelho assassino comandado por um cérebro sem cérebro. Os dois saem de casa para viver. Como, também, eu. Não poucas vezes, fomos parados para verificações. Meu marido tem quentura nos modos. Perdeu o pai bruscamente em uma inexplicável ação de quem deveria guardar vidas. Viu a mãe enlutada chorando o marido bom.

Confesso que vivi dias de ingenuidade. Achei que o racismo havia terminado o seu ciclo. Qualquer racismo. Contra qualquer raça. Quando um negro venceu as eleições em um país que tanto sangrou minha gente, sorri o sorriso do verão. O mundo não mais seria o mesmo, era o que eu decidia dizendo ao meu marido que chorava acreditando. Estávamos inocentes.

Os tempos de hoje são perigosos. Há líderes que pegam em armas para mostrar virilidade. Toscos irresponsáveis. As duas maiores armas que dignificam os humanos são a razão e o coração. Deixam as duas de lado, os dois. Nem pensam, nem sentem. Só agem ungidos por tantos outros que parecem não entender de humanidade.

Meu marido encomendou paciência para não brigar com o patrão. Um homem que, antes, escondia o preconceito por vergonha de que outros soubessem, mas que, hoje, se acha no direito de revelar sua face sem face. Quem destampou essas loucuras? A casa em que trabalho finge bondade. Uma distante bondade. Precisam de mim, mas me olham verticalmente. A escola do meu filho tem trabalhado temas que ajudam a compreender a convivência. Tem estudado pessoas e momentos que apresentaram a primavera aos viventes. Desabrochamos para o belo com Rosa Parks, Martin Luther King, Mandela, e tantos outros que permaneceram eretos. Não sem sofrimentos.

Uma amiga minha, negra como eu, foi comprar em uma padaria e recebeu um "Hoje, não temos nada pra te dar". Olhou ela para si mesma, tentando entender o que seu corpo comunicava. Nada contra os que pedem. Tudo contra os que julgam. Os que se julgam superiores. Disse ela algumas palavras em tom correto. Exigiu atitude correta e saiu chorando para dentro.

Eu tenho medo, sim. Gosto dos dias de outono em que o sol espanta algum frio. Gosto de sair com meu marido para passeios simples. Gosto de acompanhar o crescer do meu filho e de sonhar com futuros de paz. Não tenho o direito de viver em paz? Mundo perdido em que muitos gritam gritos surdos e muitos deitam em silêncio com medo ou com preguiça de agir. Não se trata deles. Quando vi a cena do homem negro pedindo ar, estava ao lado da minha patroa. Olhamos a mesma imagem. Tive dor em cada pedaço de mim. Ela olhou, nem prestou atenção. Um lampejo de esperança me aqueceu quando a filha, da mesma idade do meu filho, se mostrou indignada. Sofreu, também. "Covardia! Como pode um homem fazer isso com o outro? Ele não tem sentimentos?". A mãe respondeu qualquer coisa e prosseguiu se enfeitando. É assim que agem os omissos. Quando não é com eles. Sempre é com eles. Não. Não há vários mundos. Há um só. Que está sujo pela natureza humana.

Faz frio na minha alma. Gostaria de viver uma outra estação. De dormir e acordar com o barulho bom dos animais que brincam de cantar e de voar a liberdade. De tomar banho na mesma cachoeira que banha outras pessoas diferentes de mim. A água na nascente é pura. Como a liberdade sensata. Como ser livre se os grilhões do ódio andam soltos comandados por vozes inumanas?

Não é a cor, são os sentimentos que traçam a diferença dos bons e dos outros.
*Gabriel Chalita é professor e escritor