Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Disse nada meu filho. O silêncio sussurrou que a limpeza a ser feita era nossa.
Limpei sozinha a vida nesses quase 40 anos de casados. Ouvi histórias que escondiam histórias, enquanto varria para longe o que nos desunia. Julguei ser melhor permanecer.


Talvez tenha aprendido, observando minha mãe. Meu pai contava sobre caçadas aos amigos, enquanto ria alto jogando cartas. Minha mãe, que tudo ouvia, lavando as louças em silêncio, dizia nada. Não era sobre animais que ele falava. Decidi ficar convencida de que ele mentia, que dizia o que dizia por insegurança. Meu irmão não concordava e, invariavelmente, protestava com sua ausência. Viveram juntos até o fim. O que aconteceu, nesses dias, me fez desejar outro fim.


Dirceu foi alguém que o tempo deixou distante. Um primeiro amor sem grandes encontros. Uma promessa que morreu na decisão de meu pai de que ele era ninguém e que, portanto, eu precisava escolher algum outro. Então, foi com Pedro que me fiz mulher e que vivi esses anos todos. Lembro que demorei algumas estações para tirar Dirceu de mim. O imaginado parece demorar mais para partir do que o consumado.


Então, resolveram fazer uma reunião dos formandos daquela escola, 50 anos depois. Tudo à distância, como exige esse tempo de pausas. Éramos poucos. E lá estava Dirceu. Os cabelos aloirados de antes se fizeram acizentados, a pele tinha cansaço nenhum; os olhos, os mesmos que me tiraram tempos de pensamento. Resolvi falar pouco e nunca com ele. Não sei ver pela máquina quem olha para quem.


Dormi com a sensação de que seus olhos eram meus. E sonhei. E acordei sobressaltada com medo de alguma palavra sussurrada sem a consciência do dia. O telefone me avisa de alguma mensagem. Era ele. Está separado, há algum tempo, e é em mim que ele pensa. Estava certa. Os olhos eram meus. Fez comentários incomuns às pessoas da nossa idade. Disse coisas que me tomaram desprevenida. Sobre meu sorriso, sobre o tom da minha voz, sobre o balançar da minha cabeça, sobre os meus seios. Corei e parei de ler. O susto foi tão grande que Pedro, saído do banheiro, quis saber. Fiz como ele, contei uma história para esconder outra.


O dia se seguiu com outras mensagens. Decidi responder. Ele com quentura, e eu com delicadeza. Fez a proposta de nos encontrarmos. De continuarmos o que ficou nas intenções, há meio século. O meu corpo, de 69 anos, dançava incontrolado. Sensações de que não me lembro que existiam trouxeram a vida que se cansara de volta.


Pedro estranhou meu estranhamento. Era sorriso em demasia para um dia frio. Eu estava quente. Estar com ele novamente, estar com ele pela primeira vez, ser mulher no seu corpo. Por que não? Ele dizia para deixarmos o medo e nos acertamos. Dizia isso, porque falei sobre medo e sobre estar casada há tanto tempo.


O que era o tempo para o amor? Era um alternar de romantismos com obscenidades. As mensagens, nos sete dias antes da descoberta, trouxeram a mim sentimentos desconhecidos. Acordava antes do dia para ver o que ele me reservava. Esperava Pedro dormir para o "boa noite" com delícias. O celular me acompanhava e eu ria sozinha imaginando.


Foi quando Pedro me deu um suspiro de atenção e percebeu que eu era outra mulher. Enquanto eu descansava o pensamento no banho demorado, Pedro leu as mensagens. Enquanto eu me secava, ele me encarou e chorou pela primeira vez sobre mim. Não havia para ele uma outra vida possível. Eu não podia desejar um outro. Eu não podia partir como eu dizia na troca de mensagens. Já havia futuro nos nossos textos. Já estava grávida de um amanhã na quentura de um amor que me notasse. Eu apenas ouvia. Foi quando ele falou sobre os meus seios e se aproximou, tirou a toalha e foi brincando comigo. Seu desejo, há muito, não me via. E fizemos amor. E nos levantamos em silêncio. E tomamos café com música. E nos namoramos. E ele quis, novamente, me amar. Não sei em quem pensava, mas me permiti viver aquele instante. E, depois, me falou de planos.


Dirceu, havia dito sobre dias juntos no mar. Pedro, me falou do mar. Do quanto gostávamos de nos beijar juntos no vaivém das ondas. Pensei no tempo. Há quanto tempo não fazíamos isso. O pensamento trouxe desejo e dúvida em mim. Peguei o celular e, na frente dele, mudei a senha. A decisão seria minha. No tempo em que ele não me quis, ele teve quereres. E agora... E agora? Dirceu é o que imagino. Pedro é o que tenho. E agora?


Disse nada meu filho, quando ele contou a história. Foi elegante no dizer. Apenas narrou. Não me fiz de culpada. Ouvia sentada suas inseguranças. E reparei no quanto ele ainda era belo. Olhei as mãos que se mexiam nervosas, os pés descalços, a ausência de chão daquele dia. A Dirceu, disse que ele havia lido as mensagens. Ele pareceu não se importar. O resto não disse. Vou deixar que o tempo diga.


Pedro resolveu fazer o jantar. Cozinha bem o meu marido, embora tenha perdido o costume.
*Gabriel Chalita é professor e escritor