Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Chora Helena, amiga que redescobriu em mim alguma esperança. Diz ditos que me assustam, tamanha dor. Suas palavras desenham, com sangue, acontecimentos que prefiro não espalhar. O que espalho é afeto, é colo, é um bolo que preparei recheado de intenções de adoçar o amargor de seus ontens. Enquanto come, conversa ela comigo.

Trago lembranças da terra onde nasci. Sou das Minas Gerais. Sou das montanhas que permanecem explicando que o vento varre e que o solo fecunda outras histórias.

O marido de Helena é o seu maior calvário. Ouço e ardo em discordância com os que rasuram a palavra amor. As marcas no corpo de Helena horrorizam a paz que cultuo. Um filho morreu. O outro fugiu do pai ou da mãe, praguejando família sem amor. Ela se culpa pela fragilidade. É boa demais para decidir. Eu discordo.

Aprendi, desde antes, que o bem é mais forte do que o mal. E escrevi, em meus passos, que não cederia nem por medo nem por acomodação. Ainda criança, olhei com piedade para um tio que fez fama ultrajando a mulher. Ela superou e viveu a felicidade dos dias sem ele. Já morreu esse meu tio, morreu de tormenta.

Sim, era sobre a fragilidade do mal que eu dizia à Helena. Mas, para que ele se vá, é preciso que o bem ocupe a cabeceira das conversas. E das caminhadas. Helena come o bolo de cenoura com calda de chocolate. Come e mastiga com a intenção de eternizar o instante. Diz que é bom ficar comigo. Tem vontade nenhuma de voltar para casa. Pede a Deus que o marido esteja na rua. Eu quebro o raciocínio e tento saber o que Deus pede. Ela espalha simplicidades dizendo que seria bom se Deus falasse. Eu espero mais um mastigar e insisto. Deus fala. Ela ouve um piar animado do lado de fora da cozinha. E ri. Gosta do voo dos passarinhos, mas está presa.

É quase hora de o sol se despedir. E, da janela da sala, se vê o longe. E é lindo. E, de perto, ela pouco vê de esperança. Quer deixar o marido e recuperar o filho, mas não sabe se é certo. Não sabe se tem pena dele ou medo da solidão. Joga palavras desconectadas dos pensamentos. Diz que é a falta de trabalho que o levou para a bebida e para o erro. Depois se lembra de que antes era, também, errado. E chora no intervalo das mordidas do doce.

Eu coloco uma música para agradecer o sol que mesmo partindo ainda aquece. Ela engole o café e suspira de prazer. Pede para ficar um pouco mais. Eu digo que tenho pressa nenhuma. Ela diz que é bom ouvir os passarinhos. Que poderia ter sido cantora. Que poderia ter escolhido uma profissão que viajasse sempre. Eu digo que não há nada melhor do que o ninho da gente. Ela diz nada. E ensaia concordar.

Não posso decidir por ela. Não moro dentro dela. Só posso apresentar o que conheço para que ela se interesse por outro canto. No canto em que moro, moram o aconchego e a decisão de abraçar o bem como lei inscrita em mim mesmo. É o que me faz forte para combater qualquer desavisado que se ache no direito de sujar os meus dias.

Acabo de decidir que vou cozinhar um bolo por dia até que Helena se fortaleça. Vou misturar o doce que se come com o doce que se sente, quando se sente amado. Vou caminhar com delicadeza pelas suas interrogações e ajudar a minha amiga a exclamar a força da sua liberdade. E vamos, juntos, em busca do filho que desistiu. Enquanto penso, ela sorri como se lesse em mim os dias bons que virão. E dizemos nada depois da decisão.

Amanhã, vou à feira que fica perto de casa e, depois, vou continuar ouvindo os dias e as pessoas que os enfeitam com suas necessidades.
*Gabriel Chalita é professor e escritor