Ricardo Bruno - Divulgação
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Por Ricardo Bruno*
O livro de memórias do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ilustra uma questão absolutamente natural do presidencialismo brasileiro e, por extensão, da administração pública dos estados da federação: o livre preenchimento dos cargos de confiança. Um procedimento resultante do presidencialismo de coalização que, em si, nada tem de reprovável. Partidos aliados participam do governo – aqui ou em qualquer outra parte do mundo.

A importância da leitura do depoimento do ex-presidente decorre de uma crescente e esdrúxula interpretação de setores do Ministério Público de que as articulações partidárias para a formação de base parlamentar, com respectiva participação no governo, configuraria prática ilícita ou mesmo criminosa. Por esta estranha inovação da teoria do direito, criminaliza-se a política e não o eventual criminoso.

No depoimento, FHC descreve, sem pejo, a criação do Ministério Extraordinário da Coordenação Política para cuidar exatamente do encaminhamento das nomeações. Ou seja, havia um ministério inteiramente voltado à tarefa de atender às indicações parlamentares.

Recentemente, o presidente Bolsonaro resolveu criar alguma base no parlamento. Trouxe os partidos do centrão para governo, com a cessão de cargos importantes na estrutura de poder. Não há nesta decisão qualquer evidência de prática criminosa, ainda que se possa discordar dos nomes indicados e da incoerência do comportamento do presidente, antes contrário ao diálogo e à negociação.

Na extensa denúncia contra Witzel, os procuradores federais afirmam que há “uma estrutura criminosa imemorial voltada ao loteamento de cargos públicos e mão de obra terceirizada que se perpetua gestão após gestão através da troca de favores ilícitos entre Executivo e Legislativo”.

A conclusão é tão equivocada quanto estarrecedora. Indicações parlamentares são tratadas como uma espécie de batom na cueca, a prova irrefutável do crime - quando não passam de documentos que comprovam negociação política. Se dessas indicações resultarem crimes, neste caso, que sejam esclarecidos e os responsáveis punidos exemplarmente. Além disto, é criminalizar a política.

A imprecisão do discurso montado pelos procuradores neste capítulo faz do libelo acusatório uma peça mais panfletária e menos técnica. Juntam-se fatos da rotina política nacional a expressões gravosas sugerindo a atuação de grupos criminosos. Não se mostra, contudo, o chamado nexo causal entre o fato, a nomeação, e o suposto crime.

Política é política. Crime é crime. Políticos criminosos devem ser punidos exemplarmente. O que é intolerável é a criminalização da política sob o pretexto de combate à corrupção. Este método, tão comum na Lava Jato, destrói de roldão os alicerces da democracia. Transforma o político, eleito com o voto popular, em personagem sempre suspeito, mesmo sem provas. De resto, reduz a pó a soberana expressão constitucional de que todo poder emana do povo e em nome dele deverá ser exercido.
*Ricardo Bruno é jornalista