Por William Douglas*
Este é o primeiro artigo de uma série de três.

Sou professor voluntário da Educafro há mais de 21 anos. É uma OSCIP católica franciscana que trabalha com inclusão social e educacional de pobres e carentes, em sua maioria negros., Eu já lidava com a temática racial bem antes de ela, finalmente, entrar na pauta da mídia e da sociedade. O fato de ser magistrado nos acostuma a avaliar teses e antíteses, a fazer sínteses, a buscar a pacificação e a decidir ainda que isso traga a antipatia de alguns ou até da maioria. Não sou novo nesse assunto. Em especial em temas espinhosos e polêmicos devemos manter a coerência. Sempre digo que precisamos discutir argumentos e não adjetivos, e que acredito em encontrarmos uma pauta comum acima das ideologias, credos e cores.
A experiência de professor e juiz, e as inquietações do cidadão, me levam a escrever sobre a necessidade urgente de um freio de arrumação no enfrentamento do tema.
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Gandhi dizia que se formos praticar o “olho por olho” todos terminaremos cegos, e Davi Lago, pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo, magistralmente completa a ideia dizendo que precisamos de mais olho no olho e menos “olho por olho”. Precisamos, portanto, de sentar e conversar, dialogar, ouvir e buscar equilíbrio e serenidade. Como já disse antes, somos todos tripulantes de um mesmo berço gentil e estamos todos debaixo do mesmo céu, risonho e límpido.
Abordarei alguns assuntos mostrando racismos e exageros, e propondo o caminho do meio, que é onde normalmente está a virtude e a melhor solução. O que aconteceu com a empresária Luiza Trajano e com a juíza do trabalho Ana Fischer são assuntos a serem discutidos. Igualmente, analisar o que aconteceu no Itaú em 2019 e no Magalu em 2020.
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Em novembro de 2019 circulou a foto dos 125 aprovados no processo seletivo do programa de trainee do banco Itaú. Nenhum negro. Isso me incomodou e daí, pedindo providências ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, participei do envio de um ofício ao banco pedindo providências (Ofício n. 172020GAB. SNPIRMMFDH). Lamentavelmente, ficou sem resposta. Igual destino de um outro ofício da mesma época, enviado para a Mattel pedindo que não viessem para o Brasil apenas Barbies louras (já que nos EUA existem versões morena e negra). Era uma série especial, “Barbie Juíza”, mas meninas morenas e negras, e seus pais, não conseguiam achar as Barbies que existiam nos EUA, com a boa diversidade que é uma das características do país.
Em setembro de 2020 circulou a notícia de um processo seletivo do programa de trainee do Magazine Luiza onde só teremos negros. Isso me incomodou e daí enviei, desta vez diretamente, e-mail para o MAGALU sugerindo alguns ajustes. Esse assunto, MAGALU, será objeto da parte 3 desta série de artigos, e ali mencionarei seus acertos e erros.
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Aqui, quero destacar algumas diferenças nos dois casos. No primeiro, a falta de diversidade racial é silenciosa e no segundo, assumida. No primeiro caso o excesso de branquitude é resultado talvez de falta de cuidado e no segundo o excesso de negritude é fruto de talvez excesso de cuidado. Explico melhor: obviamente o Itaú não se preocupou com a questão racial, que aparece mais em seu marketing do que em suas práticas. Já Luiza Trajano tem historicamente demonstrado preocupação com a situação das mulheres e dos negros. As políticas do MAGALU assumiram a monorracialidade, de forma consciente e à luz do dia, e isto merece aplauso. Se errou na dose, não errou na ação pública. Mais me incomoda o cinismo daqueles que não se incomodam com a monorracialidade silenciosa tantas vezes repetida.
Agora, vamos falar de similaridades. Nos dois casos, o programa de trainee não tem a cara do Brasil. Em números arredondados (Censo 2010), temos no país 7,5% pretos, 43% pardos, 47% brancos, 1,1% amarelos, 0,42% indígenas. Nos dois casos, como Professor de Direito Constitucional e cidadão, preocupei-me em sugerir que fossem tomadas medidas para que os dois programas tivessem a cara mais parecida com a do nosso país. Nos dois casos, precisamos conversar e ouvir as pessoas sobre como lidar com cada uma destas situações. Ambas as situações geraram desconforto e nos desafiam a não deixar esse assunto virar uma “guerra de tribos”. Temos que fazer um esforço inteligente, consistente e coletivo para cumprir os propósitos que a CF estabelece no preâmbulo e no art. 3º, com a resolução pacífica dos conflitos.
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Eu também fiz e-mail e pedi providências concretas quando, no Colégio Franco-Brasileiro, no Rio de Janeiro, houve racismo contra uma aluna. Na ocasião, disse que combater o racismo é uma tarefa acima de ideologias e a cargo não apenas do Estado, mas também da sociedade. Antes, fiz inúmeros artigos sobre as vantagens e desvantagens das cotas raciais e das sociais, comparei ambas, escrevi sobre a interpretação equivocada da meritocracia. Infelizmente, uma parte da sociedade rejeita as cotas ou só quer cotas sociais ao passo que outra parcela quer as raciais, e ambas se desentendem sobre o conceito e aplicação da meritocracia. Criei dois conceitos novos para distinguir momentos de uso para a meritocracia "de acesso" e "de exercício" (https://qualconcurso.jusbrasil.com.br/artigos/496303135/meritocracias-parte-2-geni-salva-a-cidade).
Falemos dos excessos. Muitos querem que o racismo seja discutido, mas querem impedir a liberdade de opinião e de expressão do pensamento, protegida pelo art. 5º da Constituição. Muitos querem impedir a falta de quem pensa diferente, alguns, inclusive usando a cor da pele como critério de amordaçamento. Há quem, usando de forma equivocada o conceito de “lugar de fala”, desrespeite direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XIX) e na nossa Constituição (art. 5º, ver incisos IV, VIII e IX), e art. 220, em especial o § 2º, que veda a censura.
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Pois bem, ao saber do programa monorracial do MAGALU, a Dra. Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça, cidadã brasileira, juíza do trabalho, postou um único tweet dizendo: “Discriminação racial na contratação em razão da pele: inadmissível”. Reparem, não é preciso ser juiz para poder opinar, mas no caso temos uma magistrada postando a respeito de assunto sobre o qual passou em concurso dificílimo e se debruça diariamente. O art. 7º, XXX, da CF, embora eu entenda que é excepcionado pelo menos em parte em ações afirmativas, está lá e pode ser arguido. Para o bem ou para o mal, estando certa ou errada, a cidadã Ana tem o direito de discordar e expor sua opinião.
Ana foi ofendida, atacada, enxovalhada, quiseram calá-la por pensar diferente e até por ser branca (isso é racismo!). Na ocasião me manifestei defendendo o direito de opinião e mencionei que acusar alguém de crime é calúnia.
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Antes já havia escrito que realmente não existe “racismo reverso”, mas por motivo daquele arguido por alguns: todo racismo é racismo. Não existe o racismo do branco (racismo) e do preto (racismo reverso). Isso é uma ideia totalmente equivocada. Todo racismo é racismo, sem adjetivos. Toda e qualquer pessoa pode ser racista contra outra, é o que diz a lei. Existem vários casos de racismo (e não apenas injúria racial) nas redes sociais e mais ainda em espaços de poder. Infelizmente, a equivocada tese de que o negro não pode ser racista cria um inexistente monopólio do racismo, incentiva atitudes racistas e não traz qualquer benefício prático. Essa ideia reforça a cultura do racismo ao invés de desestimulá-la. Nesse passo, escrevi artigo junto com o Dr. Irapuã Santana.
O caso da juíza e cidadã é ainda mais absurdo pois políticos e um instituto de advogados atacaram não o mérito do assunto mas o direito de a cidadã falar, alguns a tachando como “racista”. Desde quando é possível alguém ser acusado de racismo por discutir um assunto jurídico? Desde quando discordar de uma medida citando o art 7º, XXX, da CF é algum ilícito? Ora, se há erro na fala, mostre-se o erro ao invés de se partir para ataques ad hominem. Nem Kafka teria previsto uma sociedade em que apenas um lado pode se manifestar! Não somos um país com partido nem ideias únicas, como ocorre em outros lugares do mundo.
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Os ataques de políticos e instituto de advogados merecem destaque. Ataques de pessoas comuns do povo podem ser fruto da falta de educação cívica eou jurídica, mas causa espécie a intolerância à liberdade de opinião quando sua fonte são políticos ou advogados. Será que querem, para “lacrar” eou ganhar visibilidade, votos ou prestígio, sacrificar os princípios mais comezinhos de um Estado de Direito? Querer calar o outro é um dos exageros que estou abordando, mas querer ganhar votos ou prestígios lacrando e incitando ódios e intolerâncias é coisa muito pior.
Será que um político não sabe que o debate faz parte da democracia na qual este mesmo político pode ser eleito? Será que os advogados desse instituto desconhecem o art. 5º da Constituição? Será que querem censurar quem pensa diferente? Assediar processualmente quem discorda?
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Outros dois motivos piores podem existir, ainda. O primeiro, se, não ignorando o direito de opinião em vigor no país, a intenção do absurdo ataque seja a "lacração". Assim, desrespeitam direito consagrado em busca de votos, prestígio ou visibilidade. Se isso se confirmar, será profundamente triste. Que esperança teremos se alguém desrespeita o direito do outro por razões tao egoístas? A solução, eu cito: vamos reaprender a respeitar a liberdade de opinião e de expressão do pensamento.
O segundo eventual motivo pior de quem usa argumentos ad hominem e a desqualificação do oponente é: será que não acreditam nas teses que sufragam? Será que acham suas ideias frágeis a ponto de temerem que quem delas discorda possa usar a palavra? Mordaça, não! A solução, eu cito: vamos ouvir os dois lados e que prevaleça a verdade e o bom senso.
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Enfim, este é o primeiro exagero que quero mencionar: o exagero daqueles que querem calar e silenciar quem pensa diferente. Temos que dar um freio nisso para arrumar nossa democracia e investir no Estado Democrático de Direito. Que todos leiam e respeitem o art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o art. 5º da CF. É um bom começo.
*William Douglas é juiz federal, professor e escritor