Pedro Serrano Divulgação

As manifestações golpistas do último 7 de Setembro colocaram todos aqueles que têm algum apreço pela democracia preocupados. Sem me deter em qualquer análise sobre seus efeitos, gostaria de salientar um dado importante de uma pesquisa, feita pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP, sobre o perfil dos participantes que foram às ruas apoiar o presidente Bolsonaro. Apenas 5% saíram de casa motivados pelo desejo de uma intervenção militar. A maioria queria mesmo, segundo responderam à pesquisa, era pedir o impeachment de ministros do STF e – pasmem – defender a liberdade de expressão.
Esse dado é curioso, sobretudo, se pensarmos que frequentemente Bolsonaro ameaça recorrer às Forças Armadas para resolver conflitos com demais poderes da República. Diversas vezes o presidente tem se referido às Forças Armadas como um “poder moderador” e ao Artigo 142 da Constituição como uma norma que autorizaria a intervenção miliar em caso de crise entre os poderes.
Que Bolsonaro bata sempre nessa tecla para tumultuar o ambiente público não causa espanto. Que seus apoiadores mais contumazes entupam a internet de vídeos de tom raivoso e até criminoso exortando uma intervenção militar também é de se esperar. O que causa surpresa, entretanto, é que essa teoria absurda tenha adesão entre parcela da intelectualidade jurídica brasileira.
Por mais esdrúxulo que possa parecer, há juristas empenhados em fazer uma interpretação “terraplanista” do Artigo 142 da Constituição Federal, que delimita o papel das Forças Armadas, admitindo intervenção militar “constitucional” e defendendo a tese ressuscitada por Bolsonaro. O Artigo 142 da Constituição prevê que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Como se vê, não há no dispositivo constitucional qualquer menção a um “poder moderador” ou de seu exercício pelas Forças Armadas. A leitura de que as Forças Armadas são constitucionalmente autorizadas a intervir para resolver uma eventual crise entre os Poderes é impensável, seja por meio de uma análise isolada do Artigo 142, seja considerando globalmente o texto constitucional.
Essa interpretação descabida e degenerada da norma, aliás, já foi repelida pelo STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6457. Na ocasião, o ministro Luiz Fux destacou que as Forças Armadas são órgãos de Estado, e não de governo, e que a missão institucional delas na defesa da pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os Três Poderes.
Ademais, seria um contrassenso nossa Constituição, que se inspirou no movimento constitucionalista antifascista do pós-guerra europeu e nasceu como antídoto contra a ditadura, outorgar qualquer função moderadora às Forças Armadas, em detrimento dos poderes constituídos e do próprio Estado democrático e de Direito.
Essa visão, dentre outras, é mais uma contribuição problemática de uma parcela da intelectualidade jurídica no Brasil e ilustra como o golpismo não se estrutura apenas pela reunião de ignorantes ou pela circulação de fake news. Os 5% que pediam intervenção militar nas ruas de forma barulhenta preocupam menos do que juristas capazes de interpretar de forma “criativa” o Artigo 142 e de divulgar falácias sobre decisões do Supremo.
A Constituição de 1988 é um importante marco no processo civilizatório brasileiro. Mantê-la de pé, diante do ambiente de polarização extrema e virulenta que vivemos, é uma tarefa de todos que não desejam o aprofundamento da crise no país. Aqueles que não ajudam nessa empreitada poderiam apenas não atrapalhar com suas interpretações equivocadas e perigosas.
Pedro Estevam Serrano é Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris Nanterre; Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito na graduação , mestrado e doutorado da PUC/SP, sócio do escritório "Serrano, Hideo e Medeiros Advogados