Allan BorgesDivulgação

O conceito de liberdade no Brasil permanece aprisionado pela desigualdade estrutural, que molda as oportunidades e define os limites de realização humana. O espaço urbano, que deveria ser a arena onde liberdades concretas se desenvolvem, é na verdade o palco de uma profunda exclusão social. A cidade não é acessível a todos, e o direito a usufruir dela é condicionado pela classe, pela raça e pela renda.

Vivemos sob o domínio de uma lógica que transforma a pobreza em culpa e a desigualdade em destino. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023) e do IPEA (2022) expõem o efeito perverso dessa engrenagem: o Brasil tem mais de 832 mil presos, dos quais 66,3% são negros e 90% pertencem às classes mais baixas. A exclusão não para nas prisões. A ONU (2022) relata que a violência racial no Brasil é uma epidemia, com 8 em cada 10 mortos pela polícia sendo negros. Esses números, que parecem estatísticas distantes, são na verdade espelhos de uma estrutura que naturaliza o sofrimento de muitos para sustentar os privilégios de poucos.
Na periferia das cidades, onde as oportunidades são escassas, a ditadura da necessidade impõe uma luta pela sobrevivência que aniquila sonhos e aspirações. Essa realidade não é fruto do acaso, mas de um projeto social que escolheu perpetuar a desigualdade como um instrumento de controle.

A segregação espacial, ao confinar populações vulneráveis em territórios marcados pela precariedade, priva milhões de cidadãos de oportunidades fundamentais e restringe suas capacidades de agir e se desenvolver. A liberdade de escolher e realizar planos de vida está diretamente ligada às condições materiais e sociais que garantem igualdade de acesso às oportunidades.
Essa desigualdade reflete o contexto social e a ausência de políticas públicas integradas que tratem a cidade como um espaço de justiça distributiva. O Direito à Cidade, enquanto conceito jurídico e político, postula que o espaço urbano deve ser acessível a todos e moldado pelas necessidades coletivas. No entanto, o desenvolvimento urbano no Brasil tem sido orientado por lógicas privatistas, nas quais o interesse econômico de poucos prevalece sobre os direitos fundamentais da maioria.

Um exemplo dessa dinâmica é a relação entre mobilidade social e exclusão territorial. Relatórios do Banco Mundial (2022) indicam que são necessárias nove gerações para que uma família pobre alcance a classe média no Brasil. Essa estatística evidencia que a desigualdade não é apenas econômica, mas também espacial: ela está inserida nas condições concretas de acesso à educação, à saúde, saneamento e à infraestrutura urbana, que variam significativamente conforme o território.
Além disso, o discurso meritocrático, amplamente defendido por elites urbanas, mascara essas disparidades ao desconsiderar as condições iniciais extremamente desiguais. Segundo a Fundação Lemann (2024), apenas 6% dos jovens negros das classes D e E alcançam o ensino superior. Essa é uma clara demonstração de que a desigualdade de partida inviabiliza a igualdade de resultados, tornando o mérito uma abstração para justificar privilégios herdados.
O populismo penal, ao criminalizar a pobreza e desviar a atenção da desigualdade, reforça a precariedade social e alimenta a violência que tanto pretende combater. A repressão se transforma em uma política moralizadora, que oferece à classe média a ilusão de segurança enquanto ignora as causas reais da insegurança. Essa lógica, no entanto, é insustentável. Não há prosperidade possível em uma sociedade que priva milhões de pessoas do acesso a direitos básicos.
A exclusão urbana não é apenas uma tragédia moral; é uma barreira prática ao desenvolvimento humano e econômico. Cidades mais justas não são um ideal utópico, mas uma condição necessária para a estabilidade e a prosperidade coletiva. Como Jessé Souza destaca, é a indignação legítima contra a desigualdade que pode mobilizar a transformação. Para Amartya Sen, essa transformação não deve apenas corrigir desigualdades, mas ampliar as liberdades reais de cada indivíduo.
O futuro das cidades depende de reconhecer que a inclusão não é uma escolha moral ou uma concessão, mas uma estratégia essencial para o progresso. Persistir na exclusão é condenar o Brasil a um ciclo interminável de violência e estagnação. Por outro lado, construir cidades para todos é a única maneira de garantir que as liberdades e capacidades de cada indivíduo sejam respeitadas, ampliando, assim, as possibilidades de uma sociedade mais justa e próspera.
* Allan Borges, executivo ESG da Cedae, doutorando em Direito da Cidade – UERJ, pesquisador do NEPEC-UERJ