PMs executaram dois jovens após abordagem violenta em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. - Reprodução de vídeo
PMs executaram dois jovens após abordagem violenta em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.Reprodução de vídeo
Por Gabriel Sobreira
Rio - A morte de dois jovens, na semana passada, após serem abordados por dois policiais militares, no bairro Babi, em Belford Roxo, ao ver de uma pesquisadora, reforça o argumento de um levantamento, lançado recentemente. O estudo, com base nos números das próprias polícias, aponta que, só no ano passado, no Rio de Janeiro, 86% dos 1814 mortos pela polícia eram negros. A pesquisa abrange ainda Bahia, Ceará, Pernambuco e São Paulo. Para Silvia Ramos, cientista social e um dos nomes à frente do estudo 'A Cor da violência policial: A bala não erra o alvo', da Rede de Observatórios de Segurança Pública, esse número não é algo que "a gente possa dizer que foi um excesso aqui ou acolá. É uma ação policial racialmente orientada, focalizada em negros, sobretudo jovens e negros de favela e periferias".
"Em mais de 20 anos de pesquisas sobre violência e polícia no Rio de Janeiro, nunca vi um policial abraçar uma mãe de favela, pedir desculpas e dizer: 'matei seu filho sem querer', ou 'me perdoe'. Nos 20 mil casos de mortes por policiais, nos últimos 20 anos, raramente policiais reconhecem que atiraram antes de perguntar, que cometeram um erro, que excederam o uso da força ou que poderiam não ter matado", diz ela.
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'A POLÍCIA JAMAIS FARIA OPERAÇÃO NAS ÁREAS BRANCAS'
A pesquisadora explica que nesses 1.814 mortos em 2019, não entraram casos como o do garoto João Pedro, morto durante a pandemia, ou da menina Agatha Felix, morta em 2018, e vários outros casos. "Pois nem sempre são considerados confrontos. Essas 1814 mortes são casos em que a polícia alegou que houve um confronto e que aquela pessoa morta se opôs à polícia. E 86% desses mortos, quase 90% desses mortos, são negros. Isso mostra uma polícia com uma orientação abertamente, declaradamente racista", defende a especialista. "A polícia jamais faria esse mesmo tipo de operação nas áreas ricas, brancas, e abastadas da cidade", completa.
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Silvia explica ainda que não lhe parece que seja o caso de despreparo policial. "Parece uma orientação nesse sentido de que algumas áreas policiais estão autorizadas a chegar atirando. (Com um pensamento deles de que) se matarem alguém, infelizmente, paciência. É assim que chegamos às 1.814 mortes do ano passado", afirma a coordenadora da Rede de Observatórios de Segurança Pública.
EXPLOSÃO DE VIOLÊNCIA NA BAIXADA EM OUTUBRO
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Silvia chama a atenção para o mês de outubro, quando houve, segundo ela, um fenômeno específico na Baixada Fluminense. "Em outubro, houve uma explosão dos casos de violência policial na Baixada Fluminense, passaram de 14 mortes, em setembro, para 62 em outubro. Um aumento de mais de 340%", aponta.
Segundo a pesquisadora, após a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) obrigando as polícias a pararem de fazer operações em favelas, as mortes caíram. "Antes, que eram 170, 130 por mês caíram para 34 (junho), depois ficaram 50 (julho), 50 (agosto), 52 (setembro) e outubro voltaram a 145. O que estamos verificando é que há uma orientação dos comandos em parem de atirar e parem de matar, e essas mortes despencam. E agora em outubro, principalmente na Baixada Fluminense, houve uma orientação de comandos dentro dos batalhões e entre os policiais: podem atirar e podem matar. Isso não tem nada a ver com criminalidade", reforça a especialista.
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De acordo com Silvia, nos cinco meses em que as mortes pela polícia despencaram, não houve qualquer aumento de nenhum tipo de criminalidade: nem de crimes contra o patrimônio nem contra a vida.
"A polícia estava matando muito, a criminalidade estava num determinado patamar. A polícia parou de matar durante cinco meses, a criminalidade se manteve no mesmo patamar. Agora, a polícia voltou a matar, a criminalidade voltou se mantem no mesmo patamar. O que aumenta e diminui é alguma coisa que diz respeito a uma dinâmica de autorização para matar dentro das policias. Pode ser também que tenham ali dinâmicas locais de favorecimento de milícias, e de acertos com o mundo do crime. Uma polícia que mata muito, é também uma polícia muito corrupta. É assim no mundo inteiro", salienta.
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INVESTIGAÇÃO POR TODOS OS LADOS
A estudiosa questiona quantas dessas 1.814 mortes teriam sido possíveis evitar, quantas foram excesso de utilização do uso da força, quanto dessas mortes foram acertos de contas e no meio também tem corrupção policial, quantas dessas mortes foram para favorecer grupos de milícia. "O policial chega na delegacia e diz: 'recebi uma injusta agressão' e apresenta uma trouxinha de maconha e de cocaína e uma pistola e diz que foi aquela morte ou aquelas mortes foram resistência à ação policial e fica por isso mesmo, nem a policia civil investiga, nem o MP", observa ela, que vai além:
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"Quando você tem uma sucessão de fatos como esse ao longo de anos, mais de mil por ano, no ano passado tendo chegado a 1.814, que é um numero inaceitável por qualquer parâmetro de policia seja nacional ou internacional, e nada disso é investigado. O que temos é que casos como esses, Jhordan Luiz, de 17 anos, e do Edson Arguinez, 20, o caso das meninas Rebeca Beatriz, de sete anos, e Emily Victoria, quatro, que estavam brincando na porta de casa e passou uma viatura portando fuzil e o tiro veio de algum lado, que a polícia sempre diz que não foi ela. Esse tipo de caso vai sempre se repetindo", lamenta.
A cientista social frisa que a realidade só irá mudar quando for tirado o poder da polícia, coloca-la menos na rua, com menos abordagem e menos trabalho repressivo. "Porém com mais trabalho investigativo e inteligência, para que se desarticulem as quadrilhas e não essa franja desse varejo do tráfico, que é um trabalho que polícia prende muito, mata muito e não desarticula essas quadrilhas, pelo contrário. O trabalho da polícia favorece o fortalecimento de quadrilhas e milícias", finaliza Silvia.
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Procurada, a Polícia Militar afirma que as ações de enfrentamento ao crime organizado são planejadas com base em informações de inteligência, tendo como preocupação central a preservação de vidas. A PM destaca que não cabe à Corporação o perfil etnográfico de criminosos. "Muitas vezes, nossos policiais são atacados de maneira inconsequente por homens armados, que não aceitam a rendição e fazem a opção pelo confronto. Neste cenário, vale ressaltar que o Rio de Janeiro possui características únicas, sociais e históricas, que afetam diretamente a atuação das equipes de segurança pública no perímetro urbano", diz um trecho da nota.

A PM explica ainda que o estado presenta 1.413 áreas consideradas conflagradas, e que pode ser ilustrado pelo saldo operacional registrado até 14 de dezembro de 2020. "A Polícia Militar apreendeu 5.971 armas de fogo, entre as quais 247 fuzis. Nesse período, 30.370 adultos foram presos, e 4.456 adolescentes apreendidos foram conduzidos às unidades da Polícia Civil", afirma o comunicado.

"Cabe mencionar ainda a importância da Polícia Militar no combate ao racismo, sendo uma das instituições pioneiras a ter pessoas negras em suas fileiras, na carreira de praças e no oficialato. A Polícia Militar também teve uma liderança negra - o Comandante-Geral Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira - anteriormente a outras instituições públicas como, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal", encerra.