Nuno Vasconcellos: "Qualquer semelhança com a realidade brasileira, fluminense e carioca não é mera coincidência" - ARTE KIKO
Nuno Vasconcellos: "Qualquer semelhança com a realidade brasileira, fluminense e carioca não é mera coincidência"ARTE KIKO
Por O Dia
Rio - Embora não se saiba qual foi o estopim da explosão que atingiu quase metade de Beirute, feriu milhares de pessoas, tirou dezenas de vidas e agravou ainda mais a crise humanitária que o Líbano vem enfrentando, é possível afirmar que a tragédia era evitável. Totalmente evitável. As imagens assustadoras que correm o mundo desde a terça-feira passada não teriam acontecido se as autoridades libanesas, ao invés de fugir de sua responsabilidade, tivessem feito o que tinham que fazer para evitar a fatalidade. Elas, no entanto, preferiram se omitir e o resultado foi o que se viu.
Tempo para agir antes que o problema acontecesse, todos tiveram. As 2,75 mil toneladas de nitrato de amônio que provocaram a catástrofe chegaram ao porto de Beirute em setembro de 2013 — há quase sete anos, portanto — nos porões do Rhosus, um navio russo com bandeira da Moldávia. A embarcação viajava da Geórgia com destino a Moçambique e, devido a problemas mecânicos, precisou fundear em águas libanesas. Assim que tomaram conhecimento da carga que havia nos porões, as autoridades locais impediram que a viagem prosseguisse: havia o temor de que o nitrato de amônio pudesse cair nas mãos de rebeldes líbios, que o transformariam em munição.
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A medida inicial, claro, se justificava. Basta uma consulta ao Google para saber que o nitrato de amônio, muito eficiente como defensivo agrícola e fertilizante, é também um explosivo poderoso. Pode ser utilizado como propelente de foguetes e matéria prima de bombas. Por essa razão, sua guarda e manuseio exigem cuidados. Armazenado em condições adequadas de temperatura e de ventilação, não oferece perigo. Mas pode entrar em combustão se for exposto a temperaturas elevadas — provocadas por um raio, um curto circuito ou, ainda, pelo gesto de um irresponsável ou por um atentado terrorista.

PRESENÇA VISÍVEL — Uma tragédia dessa dimensão, por si só, atrai atenções. As imagens da destruição e a exposição do drama das pessoas atingidas despertam interesse, causam comoção e estimulam a solidariedade. Há, além desse, outros motivos para falar da explosão em Beirute neste espaço, que é dedicado à discussão de temas relacionados com o Brasil e, especialmente, com o Rio de Janeiro. A primeira delas é a ligação histórica entre o povo libanês e o povo brasileiro e carioca.
Entre a segunda metade do século 19 e as primeiras décadas do século 20, milhares de libaneses chegaram ao Brasil como imigrantes e deixaram suas marcas em várias cidades. A colônia do país amigo tem mais de 12 milhões de integrantes no Brasil — uma população superior à do próprio Líbano, que é de quase 7 milhões de pessoas. No Rio, em particular, a presença é visível. Muitos deles se estabeleceram como comerciantes na Rua da Alfândega — uma das marcas da presença libanesa na cidade. Há outras. O Clube Monte Líbano, na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, é uma delas.

NÃO É MERA COINCIDÊNCIA — A outra razão para que o tema seja tratado neste espaço é a inércia das autoridades diante de uma tragédia previsível — algo que, infelizmente, é comum no Brasil. Conforme a Al Jazeera, a mais respeitada emissora de TV do mundo árabe, não faltaram avisos de perigo nem pedidos para que o nitrato de amônio fosse tirado dali. Mas ninguém tomou as providências legais para que a carga explosiva saísse do galpão precário em que se encontrava. Qualquer semelhança com a realidade brasileira, fluminense e carioca não é mera coincidência.
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Não é preciso ser especialista para saber, por exemplo, que as chuvas de verão provocam deslizamentos e tiram a vida de pessoas que vivem em regiões de risco. Mesmo sabendo disso, pouco se faz nos períodos de seca, para evitar a tragédia que certamente virá quando as águas caírem. A situação, que já é ruim, torna-se ainda pior quando o próprio poder público cria as condições para que os desastres aconteçam.
No final de julho, a Câmara dos Vereadores do Rio aprovou por 28 votos contra 19 o Projeto de Lei 174, elaborado pelo Executivo. O documento, na prática, permite a regularização de construções ilegais. Mediante o pagamento de uma taxa, qualquer construção erguida pelos “empreiteiros” milicianos passa a ser considerada regular — mesmo que tenha sido feita de qualquer maneira e apresente risco de cair. Foi isso que aconteceu, por exemplo, com os prédios que desabaram na comunidade da Muzema em abril de 2019, matando pelo menos 24 pessoas.
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Pela área atingida e pelo estrago que causaram, os desabamentos da Muzema são, proporcionalmente, mais graves do que a explosão de Beirute. Se outras tragédias como ela acontecerem daqui por diante, a Câmara dos Vereadores do Rio não precisará sair por aí buscando os responsáveis e procurando culpados: bastará apontar o dedo para si mesma.


(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no twitter e no instagram: @nuno_vccls)