Permitir que organizações criminosas interfiram, com vêm interferindo, na escolha dos representantes do povo representa uma ameaça para o futuro da sociedade
Por Nuno Vasconcellos
Algumas práticas nocivas à democracia se tornaram corriqueiras nas campanhas eleitorais brasileiras e nem é necessário consultar a lei para saber que configuram crimes e devem ser coibidas e punidas com todo rigor. A edição de hoje de O DIA, em reportagem assinada pelas jornalistas Bruna Fantti e Thuany Dossares, abre espaço para falar de um delito que se torna mais banal a cada eleição. A ponto de os criminosos nem mais se acanharem em cometê-lo à luz do dia e diante de todos. Trata-se do emprego da violência para manter os eleitores de um número cada vez mais expressivo de bairros e comunidades confinados em currais eleitorais de candidatos apoiados pelo crime organizado.
As jornalistas chegaram a casos reais de cidadãos e cidadãs que sofreram violência por, em determinada área da cidade, exibir um adesivo ou distribuir material de campanha de algum candidato que não seja apoiado pelas milícias ou pelos traficantes de drogas que dominam aquela região. O desrespeito à lei é flagrante. O Artigo 248 do Código Eleitoral diz expressamente que ninguém “poderá impedir a propaganda eleitoral, nem utilizar, alterar ou perturbar os meios lícitos nela empregados”. O que se vê em várias partes da cidade, no entanto, é o descumprimento escandaloso desse dispositivo.
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Jagunços agem a mando dos cabeças do crime e destroem o patrimônio de quem não acata suas ordens. Eles agridem os cabos eleitorais e cuidam de manter os outros candidatos longe dali. Com o uso da violência, cerceiam o direito do eleitor de escolher com liberdade o candidato para um cargo fundamental do nosso sistema representativo. E esse cargo é justamente aquele que parece menos importante da hierarquia eleitoral brasileira, o de vereador.
PROCESSO DE IMPEACHMENT — Conforme já foi dito neste espaço no dia 25 de outubro, há duas semanas, portanto, o cargo de vereador é importante demais para ser tratado com negligência pelo eleitor. Sua atuação tem um impacto enorme na vida do cidadão, sobretudo daquele que usa o transporte público, paga IPTU, necessita de um sistema eficaz de coleta de lixo, tem filhos matriculados nas escolas municipais e depende das Unidades Básicas de Saúde para receber atendimento médico.
É do vereador, por exemplo, a palavra final sobre o orçamento do município. Também é dele a decisão final sobre o mandato de um prefeito acusado de praticar irregularidades. Se apenas três dos 24 vereadores, na sessão do último dia 17 de setembro, que negaram o pedido de abertura de um processo de impeachment contra Marcelo Crivella, tivessem mudado de lado, a escolha do novo prefeito se daria num cenário muito diferente do que vem sendo visto este ano.
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Caso isso tivesse acontecido, a votação teria terminado com 23 votos a favor da abertura do processo de impeachment, contra 21 a favor do prefeito. Crivella teria sido afastado de suas funções e veria suas chances de permanecer no cargo por mais quatro anos se evaporarem instantaneamente.
Ou seja, os vereadores têm um poder enorme em suas mãos. E esse poder será ainda maior na próxima legislatura. Além de ter o mesmo as mesmas atribuições de seus antecessores, os representantes eleitos este ano terão uma responsabilidade que aumentará a importância de seus mandatos. Caberá a eles rever, em 2021, a Lei Orgânica do Município, que pode dificultar ou facilitar, por exemplo, a regularização das moradias ilegais construídas e vendidas por “construtoras” ligadas à milícia em vários bairros do Rio.
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Entregar uma tarefa importante como essa a quem estará ali não para representar o cidadão, mas para defender os interesses das quadrilhas, significa uma ameaça ao próprio futuro da cidade.
AMEAÇA AO CIDADÃO — Acontece que a responsabilidade pela formação de uma boa Câmara Municipal não é apenas do eleitor. Ele não tem, sozinho, força para resistir a essas organizações e qualquer tentativa que tome para se opor a elas pode, como se sabe, lhe custar a própria vida. Sem forças para resistir, ele acaba cedendo à pressão dos criminosos e, quando isso acontece, usa contra seus próprios interesses a única arma que tem para forçar o Estado a trabalhar em defesa de seus interesses: o voto.
A obrigação de agir para evitar que esse cenário se perpetue é do Ministério Público, única instituição autorizada a oferecer ao Poder Judiciário denúncia por crime eleitoral. Apenas os promotores e procuradores eleitorais, e ninguém mais, podem averiguar a prática criminosa dessas organizações, avaliar seu impacto sobre os resultados das urnas e, se for o caso, tomar providências para impedir a posse de quem tenha sido eleito com base em práticas ilegais.
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O Rio de Janeiro tem, este ano, o número recorde de 1.770 candidatos a vereador. Desses, 51 serão escolhidos pelos 4,8 milhões de eleitores do município para representá-los pelos próximos quatro anos. Permitir que, entre tão poucos a serem escolhidos por tanta gente estejam pessoas que, desde a origem, afrontam e ameaçam o cidadão é contribuir para o fracasso do próprio sistema político — e isso, conforme a história está cansada de demonstrar, é o fracasso da própria sociedade.
(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no twitter e no instagram: @nuno_vccls)