Nuno Vasconcellos: "Os danos causados por essa prática são enormes e os arranjos que passam de pai para filho muitas vezes abrem feridas que não se curam no momento em que a cabeça da organização é cortada" - ARTE KIKO
Nuno Vasconcellos: "Os danos causados por essa prática são enormes e os arranjos que passam de pai para filho muitas vezes abrem feridas que não se curam no momento em que a cabeça da organização é cortada"ARTE KIKO
Por O Dia
Sede da coroa portuguesa a partir de 1808 e do império brasileiro a partir de 1822, o Rio de Janeiro mantém nos dias atuais um hábito aristocrático que sobreviveu à proclamação da República, em 1889, e até mesmo à transferência da capital federal para Brasília, em 1960. Trata-se da força dos laços de sangue na condução da política da cidade e do Estado. O fenômeno não é exclusivo do Rio. Ele é observado, em maior ou menor medida, nos demais estados do Brasil. Mas é inegável que por aqui, além de mais escancarado, ele tem sido especialmente daninho aos interesses da população.
Muitos dos políticos que chegam a cargos de projeção no Estado são herdeiros de alguém que teve importância política antes deles. Em alguns casos, o prestígio da criatura chega até mesmo a superar o do criador. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o atual presidente da Câmara dos Deputados. Quando conquistou seu primeiro mandato como deputado federal, em 1998, as pessoas se referiam a Rodrigo Maia (DEM-RJ) como o filho do ex-prefeito César Maia. Hoje, César é vereador e apontado como o pai de Rodrigo.

DESVIO DE DINHEIRO — Não há nada de errado, como no caso de César e Rodrigo, quando um não se apoia no prestígio do outro para promover transações tenebrosas, que custam caro aos cofres públicos e aos cidadãos. O problema se dá no momento em que a política passa a ser tratada como um negócio de família e fica claro que, ao invés de uma vocação para a vida pública herdada pelo filho, o que existe nada mais é do que a intenção de se dar bem à custa do dinheiro do povo.
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Quando conquistou o primeiro mandato como deputado estadual, em 1991, muito antes de abusar da corrupção e jogar lama sobre o prestígio que um dia teve como um político jovem e modernizador, o ex-governador Sérgio Cabral era conhecido como Sérgio Cabral Filho. A referência política da família, então, era seu pai, o jornalista Sérgio Cabral. Estudioso da MPB, com o passado ligado à luta pela democracia, Cabral Pai foi vereador por três legislaturas. Em 1994, com 57 anos, foi nomeado conselheiro do Tribunal de Contas do Município (TCM) e ficou lá até se aposentar aos 70 anos. Hoje, com os mesmos 57 anos, Cabral Filho está na prisão por penas que, somadas, chegam a 267 anos.
É um caso triste, mas não é o único. O ex-secretário estadual da Educação, Pedro Fernandes Neto, que chegou a ter seu nome considerado para a disputar a sucessão do prefeito Marcelo Crivella, foi transferido na semana passada da prisão domiciliar, que cumpria desde o dia 11 de setembro, para o presídio Bangu-8. Ele foi acusado, juntamente com a ex-deputada federal Cristiane Brasil, de desvios de verbas de programas destinados à assistência social.
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Citados na mesma operação policial, batizada de Catarata, Pedro Fernandes e Cristiane Brasil são herdeiros de famílias tradicionais da política do Rio de Janeiro. A ex-parlamentar, que havia se lançado candidata à prefeita do Rio pelo PTB, é filha do ex-deputado Roberto Jefferson. O ex-secretário é filho da vereadora Rosa Fernandes, campeã de votos no Rio, com prestígio elevado na Zona Norte da cidade, e neto de Pedro Fernandes, que exerceu dez mandatos de deputado estadual pelo Rio de Janeiro.

HERDEIROS POLÍTICOS — A princípio não há problema, como foi dito ainda há pouco, quando o prestígio pessoal de um pai serve de trampolim para a carreira do filho. No mundo privado é mais do que usual que os donos leguem aos filhos as empresas que construíram ou o prestígio que amealharam em suas carreiras. Nada de errado com o ato em si. Na vida pública, no entanto, não é tão simples. Ao contrário do que sugere a prática que se tornou rotineira, ser filho de um político de prestígio não é credencial suficiente para que alguém exerça qualquer cargo público.
Os danos causados por essa prática são enormes e os arranjos que passam de pai para filho muitas vezes abrem feridas que não se curam no momento em que a cabeça da organização é cortada. Veja, por exemplo o caso do clã Picciani. Muitos dos acertos feitos quando o patriarca Jorge Picciani mandava e desmandava na política do Rio continuaram a lesar os cofres do estado mesmo depois que ele foi alcançado pela Justiça por ligação com a máfia dos transportes.
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Foi por meio da família Picciani que a Ivestplan, do empresário Paulo Afonso Trindade Júnior, passou a fazer negócios do governo do Rio de Janeiro. Em troca, Trindade — que nunca tinha visto de perto um boi da raça nelore — passou a fazer negócios milionários com a empresa pecuária da família Picciani. Trindade chegou a fechar contratos de quase R$ 300 milhões para alugar computadores, note books, aparelhos de ar condicionado e outros equipamentos para uma série de secretarias do Rio. Nunca houve uma investigação séria a respeito. Ou seja: a ferida aberta pelo patriarca Picciani e seus filhos, pelo visto, continua aberta até hoje sem que ninguém faça nada para estanca-la.
(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no twitter e no instagram: @nuno_vccls)
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