Não importa se o imunizante será feito pela Fiocruz, no Rio, ou pelo Butantan, em São Paulo. O importante é que esteja disponível o mais depressa possível
Por Nuno Vasconcellos
A guerra política que se assiste entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, em torno da vacina contra o coronavírus é, provavelmente, a primeira disputa do gênero em que o cidadão pode sair ganhando. Se Doria não tivesse se antecipado e anunciado, antes de Brasília, um plano de imunização em massa para o estado que governa, talvez o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não tivesse passado a discutir o tema publicamente. E o Brasil inteiro ainda estaria imaginando que o governo estava imóvel diante da necessidade de uma campanha de imunização que, em outros países, já começou.
Com a iniciativa de Doria, o assunto passou a ser debatido e o país soube, finalmente, que o governo vem tratando do problema como prioridade. Melhor assim: ter em mãos um plano de vacinação consistente é, sem dúvida, tão importante quanto dispor do imunizante. Assim como ocorreu com os quase 7 milhões de testes da covid-19 que ficaram estocados e estiveram a ponto de perder a validade antes de servir à população, de nada adiantará ter uma vacina na mão e não saber como levá-la a quem estiver precisando.
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Nessa hora, serve de alento lembrar que, nesse ponto, o Brasil não está começando do zero e é um exemplo de eficiência em campanhas do tipo. O país dispõe, para começar, de uma rede pública de Saúde que, a despeito das críticas, é abrangente e ramificada. De norte a sul, há profissionais capacitados que saberão como agir tão logo recebam as vacinas no tempo mais breve possível.
Tempo é essencial no enfrentamento dessa doença e, nessa hora, a vida dos moradores dos grandes centros vale tanto quanto a dos que moram nas localidades mais remotas. No caso específico do Rio de Janeiro, os moradores de Varre-Sai (o mais distante da capital entre os 92 municípios do estado), deverão dispor da vacina praticamente ao mesmo tempo dos moradores de bairros como a Barra da Tijuca ou Botafogo. E receber o medicamento dentro dos mesmos critérios de prioridade (que levam em conta a idade e vulnerabilidade de cada indivíduo) utilizados, por exemplo, nas campanhas de vacinação contra a gripe.
EXPECTATIVAS E BENEFÍCIOS — Com os planos prontos, tudo passa a depender da Anvisa, que deverá acelerar o passo para dizer, sem ranço ideológico, se as vacinas disponíveis são eficazes no combate ao vírus e assegurar não oferecem riscos à população. O certo é que o imunizante está praticamente pronto e, desde que Doria puxou o assunto, o cidadão passou a acreditar que a resposta pode vir antes do que ele esperava. Pazuello, que inicialmente previa para março o início da imunização, agora diz que a campanha pode ter início ainda este ano. Para isso, a farmacêutica Pfizer (cuja vacina já vem sendo aplicada em caráter emergencial na Grã-Bretanha e em outros países) teria que disponibilizar um lote do imunizante. É pouco provável que isso aconteça: tem muita gente na fila esperando por pedidos feitos antes do Brasil entrar nessa disputa.
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É mais razoável, portanto, esperar pela produção local — ainda mais quando se sabe que esse trabalho vem sendo liderado por duas das mais respeitadas instituições científicas do país. O Instituto Butantan, que esteve no centro da disputa entre Brasília e o governo de São Paulo, é responsável por uma das vacinas mais promissoras, criada pela chinesa Sinovac. A Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz, do Rio de Janeiro, foi a responsável pela outra, desenvolvida pela Universidade de Oxforf e pela AstraZeneca. Trazer instituições dessa relevância para o centro de uma disputa ideológica anacrônica e sem sentido, mais do que um erro, é um desperdício de tempo, inteligência, trabalho e dinheiro.
PÁTRIA E IDEOLOGIA — Pedir sensatez às autoridades e alertar para o equívoco que significa dar um contorno ideológico às medidas necessárias para o combate à pandemia tem sido prática frequente desta coluna. Ainda no dia 12 de abril, quando algumas pessoas ainda se referiam ao causador da covid-19 como “o vírus chinês”, apontávamos para o erro de se expor ao risco a saúde da população devido a um debate político que, àquela altura, estava apenas no início. O título do artigo em que o tema foi tratado àquela altura não podia ser mais claro: “Vírus não tem pátria e remédio não tem ideologia”.
A posição em relação à disputa que vem acontecendo agora — motivada pela origem do imunizante a ser utilizado — é exatamente a mesma de oito meses atrás. Não importa se as vidas serão salvas pelo produto de origem inglesa, fabricado no Rio; ou se a solução é chinesa e feita em São Paulo. Ou mesmo de origem russa, feita no Paraná. O importante é que, desde que tenha a eficácia comprovada e reconhecida por organismos confiáveis, ela deve ser aplicada o mais depressa possível.
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Pelo ritmo das pesquisas, a vacina da Fiocruz deve ser a próxima a receber autorização emergencial das autoridades internacionais. Sendo assim, deverá começar a ser aplicada antes que a do Butantan possa ser distribuída. Na terça-feira passada, a respeitada revista científica Lancet publicou os resultados animadores dos testes com a vacina inglesa, cuja eficácia pode chegar a 90%, dependendo das condições de aplicação. Pela pressa e diligência que as autoridades sanitárias dos países desenvolvidos têm demonstrado em torno desse assunto, é provável que, já nesta semana, o produto comece a ser utilizado no país de origem. Sendo assim, a vacina da Fiocruz poderá começar a ser distribuída no Brasil antes do imunizante do instituto do governo de São Paulo. Para a população, o que menos importa agora é saber de onde virá a vacina salvadora. O importante é que ela venha logo!
(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no twitter e no instagram: @nuno_vccls)