Nuno14novARTE KIKO

Um erro básico tem marcado a discussão sobre o significado da decisão do STF que, por oito votos a dois, suspendeu na terça-feira passada a execução do chamado Orçamento Secreto — mecanismo que, na prática, possibilitava o anonimato dos autores das emendas parlamentares acatadas pelo relator da Lei Orçamentária. De acordo com os analistas, a decisão do Supremo, que desagradou deputados e senadores, abriu uma crise entre os poderes. Na prática, porém, ela pode ser vista como uma oportunidade de ouro de se abrir uma discussão de importância vital para o país.
Isso mesmo. Um debate sério em torno de todos os aspectos envolvidos na decisão pode ajudar a estabelecer uma linha mais clara entre as atribuições de cada um dos poderes. Vamos aos fatos: tudo começou quando a ministra Rosa Weber apresentou um relatório favorável a uma ação aberta por três partidos de esquerda — Cidadania, PSB e Psol —, que denunciava a existência de um “esquema montado pelo governo federal” para aumentar sua base de apoio no congresso com base no favorecimento de parlamentares aliados no ato da execução das emendas — ou seja, da decisão de escolher quais emendas receberiam dinheiro primeiro e quais teriam que esperar mais um pouco.
A ministra, então, mandou suspender a execução das emendas. A decisão, conforme deixou claro em seu despacho, foi tomada em nome do princípio da transparência no uso dos recursos públicos. A tese de Rosa Weber foi apoiada por outros sete ministros e abriu uma discussão acalorada em torno do assunto.

PRERROGATIVAS PARLAMENTARES
Os parlamentares governistas reagiram à decisão apontando uma tentativa de interferência do Judiciário na autonomia do Legislativo. Os partidos de oposição, por sua vez, aplaudiram a medida por considera-la um golpe de morte na base de apoio ao governo e um passo importante na moralização do uso dos recursos públicos.
O que faltou no episódio, como tem faltado em todo e qualquer debate sobre temas políticos no Brasil, é uma discussão mais profunda não sobre a questão da transparência na execução das emendas. O debate deve girar em torno de um tema bem mais amplo: será que as emendas parlamentares devem existir?
Isso mesmo! Ninguém levantou a questão que realmente interessa: será que a verdadeira interferência de um poder sobre o outro não é a dos parlamentares, que chamaram para si uma prerrogativa que, em qualquer democracia séria, é exclusiva do Poder Executivo? Esse é o ponto! Em qualquer lugar do mundo, o Poder Legislativo estabelece as prioridades, mas cabe ao Executivo decidir sobre os projetos que serão executados para se atingir as metas. Ou seja, os parlamentares decidem onde gastar e o executivo decide como o gasto será feito. Tudo na forma da lei.
No Brasil, no entanto, não é assim. Por aqui, cada um dos 513 deputados e 81 senadores têm o poder de decidir por sua própria conta o destino de uma parte do dinheiro público. Para este ano, cada parlamentar pôde apresentar emendas no valor de R$ 16,3 milhões. Vistas pelo valor individual, essas emendas representam uma ninharia diante dos R$ 4,3 trilhões do orçamento federal. Somados, porém, a conversa muda de tom.
As despesas apresentadas pelos 594 parlamentares brasileiros representam, por uma conta simples, uma despesa de R$ 9,7 bilhões. Além desse dinheiro, cada uma das 26 bancadas estaduais, mais a do Distrito Federal, tem o direito de apresentar emendas no valor de R$ 6,7 bilhões — o que eleva o valor para R$ 16,7 bilhões. Esse valor representa 1,1% das despesas primárias da União — que é o valor total do orçamento, inclusive salários, depois de deduzidas as transferências para os estados e municípios.
Além da discussão em torno da prerrogativa dos parlamentares decidirem sobre a prioridade de gastos públicos (o que, insisto, é uma anomalia do sistema brasileiro) é importante debater, também, os critérios de distribuição das emendas de bancada. A bolada de R$ 6,7 bilhões é dividida em partes igual para cada estado da federação. Pelos critérios adotados, o estado do Rio de Janeiro, que tem 44 deputados, três senadores e 8,2% da população brasileira, tem direito ao mesmo valor do estado do Amapá, que tem oito deputados, três senadores e 0,4% da população.
A justificativa para essa desigualdade é a mesma de sempre. De acordo com os defensores da emenda, os estados menores são mais carentes e, portanto, necessitam de mais dinheiro para eliminar as barreiras sociais que os separam dos grandes centros. Será que isso é verdade? Esse é um ótimo ponto para se iniciar o debate. Há outros que, na mesma medida, merecem toda atenção.

DISCUSSÃO INSUFICIENTE
Talvez até houvesse algum sentido em se entregar nas mãos dos parlamentares a responsabilidade sobre a definição de uma parte dos gastos aos parlamentares se vigorasse no Brasil o sistema do voto distrital. Por esse sistema, típico do sistema parlamentarista, cada parlamentar representaria os cidadãos de uma parte específica do território nacional.
No sistema representativo brasileiro, o eleitor pode escolher um candidato de qualquer parte de seu estado. Num cenário como esse, dar ao parlamentar o poder de decidir onde e como gastar o valor a que tem direito acaba gerando uma série de injustiças. Como, por exemplo, a de beneficiar a região que elegeu mais de um deputado e prejudicar a que não teve força para eleger um representante.
A discussão aberta pela decisão da ministra Rosa Weber é importante, mas insuficiente. Mais do que a execução orçamentária, o que se deve debater com seriedade é a própria existência das emendas. Da forma como funcionam, elas são politicamente injustas e economicamente inadequadas — sobretudo para um país onde falta dinheiro para quase tudo.
Esse problema é sério e precisa ser visto com muito mais profundidade do que exige uma mera queda de braços entre governo e oposição. Aliás, o orçamento, em si, precisa ser tratado com mais respeito. Da forma como a questão vem sendo administrada, corre-se o risco haver um retrocesso na saúde fiscal do país — o que não seria bom para ninguém.

DESCONTROLE DE PREÇOS
Não custa lembrar o que acontecia quando a bagunça era ainda maior do que a de hoje. Quem acompanha a questão das contas públicas no Brasil se lembra da confusão que vigorou até 1987, quando era elaborada não apenas uma — como acontece hoje — mas três peças orçamentárias por ano. Isso mesmo: três.
O que hoje se conhece como Orçamento Geral da União antes se dividia entre o Orçamento Fiscal, o Orçamento das Estatais e o Orçamento Monetário. A desorganização e o descontrole que esse tipo de arranjo permitia era uma das razões do descontrole financeiro que vigorou naquele período e alimentou a insanidade inflacionária do final dos anos 1980 e início da década seguinte.
A unificação dos orçamentos e a criação da Secretaria do Tesouro Nacional pelo ministro Dílson Funaro, no governo de José Sarney, foi a primeira das medidas que, sete anos depois, permitiram que a inflação fosse domada pelo Plano Real.
O brasileiro tem sentido, no bolso e nas prateleiras dos supermercados, a volta de uma ameaça que ele julgava sepultada para sempre. O retorno do descontrole de preços, uma ameaça que já se desenha no horizonte atual, precisa ser combatida a qualquer preço e o primeiro passo nessa direção é um cuidado maior com o orçamento e com as finanças públicas. Isso é fundamental e urgente!