Nuno3outARTE KIKO

Faltam estatísticas confiáveis para se medir um fenômeno que as empresas que prestam serviços ou que vendem mercadorias para o poder público no Brasil estão cansadas de conhecer. Os atrasos nos pagamentos, os calotes escancarados e as promessas de acertar no mês que vem as contas que deveriam ter sido pagas no ano passado são tão comuns que muitas empresas, de tanto esperar para receber o que lhes é devido, acabam não resistindo e indo à falência.
Esse fenômeno é diferente dos escândalos de corrupção que volta e meia tomam conta das páginas dos jornais. Existem, como todos estamos cansados de saber, casos de fornecedores que, em troca de ver a cor do dinheiro que lhes é devido, entregam parte do que têm a receber a alguém com poder para agilizar o processo. Isso, claro, aumenta a pressão sobre os gastos. Como terá que pagar o pedágio para receber o que é seu, a empresa acabará pedindo pelo serviço um preço muito mais elevado do que cobraria caso tivesse a certeza de que receberia em dia e na totalidade pelo serviço que prestou. Isso, claro, alimenta uma cadeia de corrupção ativa e passiva em que os dois lados estão errados.
O problema que se pretende discutir aqui é de outra natureza. Existe no Brasil um desequilíbrio brutal entre o sistema utilizado para pesar e medir as necessidades do poder público e o que é aplicado ao braço privado da Economia. E as consequências desse desequilíbrio acabam sendo tão nefastas quanto a própria corrupção. Muita gente no Brasil, infelizmente, considera normal os calotes que a administração pública sempre aplica em seus fornecedores.
Não importa se o momento fiscal é de vacas magras, como o atual, ou de vacas gordas — como já se experimentou em épocas de nosso passado recente. O que interessa é que, para governos e prefeituras, não pagar o que é devido a fornecedores privados é visto como algo tão comum quanto tomar uma xícara de café após o almoço.

SUAVES PRESTAÇÕES — Esse problema terá que ser encarado de frente caso o Brasil queira mesmo mudar a chave e voltar a atrair investidores interessados em bancar a retomada do desenvolvimento. É preciso deixar claro que, assim como as empresas que prestam serviços aos governos dependem do dinheiro público para sobreviver, a máquina pública também depende delas para atender ao cidadão.
Nenhum governo sério do mundo dá conta de atender com seus próprios meios a demanda crescente da sociedade por Educação, Saúde, Segurança, infraestrutura, saneamento, transporte e energia. Para isso, os governos contam com uma ampla rede de fornecedores. Quanto mais saudável e transparente forem a relação e os negócios do poder público com a iniciativa privada, melhor será para todo mundo.
O ideal seria que esse serviço fosse prestado por empresas selecionadas por critérios claros e objetivos. Depois, que tivessem seus serviços auditados durante a vigência dos contratos por um sistema ágil o suficiente para identificar eventuais irregularidades e, se for o caso, punir eventuais abusos. Cumpridas todas as exigências, os fornecedores deveriam receber em dia o valor pelo serviço prestado. Com esse dinheiro, pagariam os salários, recolheriam os tributos, quitariam as contas de água, luz e aluguel e, com o que restasse, remunerariam seus acionistas.
É assim que acontece nos países mais avançados do mundo. No Brasil, infelizmente, a situação é  completamente diferente. Muitos governadores e, sobretudo, prefeitos — isso para não dizer que o problema é exclusivamente federal — contratam um determinado serviço sem saber se terão recursos para pagar por ele. Depois, passam a atrasar os pagamentos e submetem o fornecedor privado a uma espera interminável.
As contas vão sendo empurradas para o exercício seguinte e se o mandato de quem assumiu o compromisso acabar antes da fatura ser liquidada, o problema se torna praticamente insolúvel. É impressionante: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que estabeleceu punições para os políticos que gastam acima do que está previsto no orçamento, não estabeleceu qualquer tipo de penalidade para quem não paga os compromissos que assumiu. Assim, os valores em atrasando vão se acumulando e a corda vai apertando ao redor do pescoço do prestador de serviço, que logo acaba sufocado...

INVERSÃO DE PAPÉIS — Esse é um lado que pouca gente observa quando se discute da qualidade sofrível das contas públicas no Brasil. A impressão que se tem é que, se o dinheiro no caixa for suficiente para pagar os salários e os aumentos concedidos ao funcionalismo, nada mais importa. As despesas vão sendo criadas sem saber se haverá recursos para pagá-las. O rombo nas contas vai se tornando cada dia maior e continuará aumentando até chegar ao ponto em pode simplesmente inviabilizar a recuperação da Economia brasileira depois de uma crise que já se estende por mais de sete anos.
Ninguém está dizendo aqui que o servidor público é o problema nem pretende jogar nas costas dele a culpa pela má qualidade da gestão pública no Brasil. A intenção é apenas chamar atenção para a gravidade da situação e alertar para a necessidade de se adotar um modelo de gestão pública que, além de melhorar a qualidade do serviço prestado à população, proporcione um tratamento mais digno ao funcionalismo.
Como se chega a isso? Ninguém tem uma reposta pronta para essa questão. Mas é cada vez maior o número dos que percebem a necessidade de mudança. O Estado tem o dever fiduciário de proporcionar ao cidadão um serviço público que seja barato, rápido e eficiente. Precisa eliminar a burocracia e simplificar as exigências sobre o contribuinte — como, por sinal, vem sendo feito na Prefeitura de Petrópolis com o projeto Viabilidade Automatizada. O objetivo do projeto é agilizar as exigências para abertura de novas empresas no município.
O Estado também precisa, e com urgência, modernizar a máquina pública e torná-la mais eficiente e ágil do que a melhor entre as empresas privadas. Precisa, acima de tudo, passar a olhar para o dinheiro público como uma fonte de benefícios para a sociedade e não como a bolada de onde sairão os recursos para bancar os privilégios para as corporações mais poderosas.
A verdade, infelizmente, é que, no Brasil, se nota uma inversão de papéis. Por aqui, o fornecedor privado é visto por muitos gestores o culpado por todos os males do serviço público — tanto assim que pode ficar anos sem receber o dinheiro que lhe é devido. Os recursos públicos, enquanto isso, podem ser apropriados pelas categorias mais poderosas do serviço público para bancar seus próprios privilégios.
Quer um exemplo? Vamos lá. Em junho passado, enquanto a sociedade inteira sofria com as dificuldades impostas pela pandemia, Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro deram para si mesmos um adicional de R$ 12 mil, que elevou os vencimentos de cada um deles para quase R$ 50 mil por mês. A desculpa para justificar a medida foi até singela: como alguns de seus colegas foram afastados por corrupção, eles estão sobrecarregados e precisam ser recompensados por isso... Num cenário como o atual, isso é desanimador. Ou será que não?