Nuno21novARTE KIKO

A contar de hoje, domingo, 21 de novembro de 2021, faltarão exatamente 315 dias — ou, caso prefira, dez meses e dez dias — para o dia 2 de outubro de 2022, data prevista para o primeiro turno das próximas eleições presidenciais. Ou seja, elas estão logo aí. Porém, na medida em que o pleito se aproxima, ao invés de surgirem esclarecimentos sobre uma série de pontos obscuros do cenário, aumentam as dúvidas em relação ao país que emergirá das urnas no ano que vem.
O futuro do país é um tema delicado e importante, mas que, infelizmente, parece não fazer parte da preocupação dos políticos — cada vez mais preocupados em criticar as decisões que os adversários tomaram ontem do que pensar no amanhã. Cada vez mais, a discussão sobre o país tem se resumido ao nome e ao estilo pessoal do próximo presidente de República. Enquanto isso, alguns problemas persistentes ficam sem solução — independentemente  de quem seja o político ou o partido no governo. Um dos problemas é o da falta de clareza com que são tomadas as decisões que envolvem o dinheiro do povo.
É bom deixar claro: esse problema não é exclusivo do governo Jair Bolsonaro! Todos (isso mesmo, todos!) os presidentes que o país teve desde que as eleições voltaram a ser diretas, em 1989, fizeram negociações de bastidores e ofereceram aos parlamentares vantagens em troca da aprovação das medidas de seu interesse. As exceções que confirmam a regra são as de Fernando Collor e de Dilma Rousseff. Ambos pagaram com os próprios mandados pela falta de interesse ou de habilidade para jogar esse jogo.
Essa tem sido a regra do jogo: no modelo político brasileiro, nenhum governo (e com o próximo não será diferente) consegue por em prática integralmente o programa que defendeu diante dos cidadãos que o elegeram. Caso queira implantar seus projetos, terá que negociá-los um a um e sempre dependerá da formação de uma maioria ocasional para vê-los aprovados. E isso sempre tem um preço.

TOMA-LÁ-DÁ-CÁ — Esse modelo, que alguns chamam de “presidencialismo de coalizão” e outros chamam de “toma-lá-dá-á”, ficou explícito ainda no tempo em que os parlamentares que escreveram a Carta de 1988 exigiram benefícios em troca da aprovação do mandato de cinco anos para o presidente José Sarney. “É dando que se recebe”, deixou claro o deputado Roberto Cardoso Alves, um dos criadores do chamado “Centrão”.
De lá para cá, a cada legislatura, os políticos se mostram mais ávidos pelos recursos públicos e cobram cada vez mais pelo apoio que dão ao presidente da vez. Quanto mais recebem, menos eles se mostram satisfeitos e exigem mais. E nesse jogo, ainda que sejam honestos com o uso do dinheiro público, deixam a impressão de que não são.
O eleitor, é claro, torce o nariz para essa prática — e sempre espera que o próximo presidente seja capaz de resistir a esse jogo bruto que se tornou a marca registrada da política brasileira. Se fazem concessões para evitar a paralisia de seu governo ficam com a culpa por não cumprir o que prometeram.
É aí que está o xis da questão. Se os partidos e seus integrantes notassem como o cidadão está sedento por transparência e honestidade, cuidariam de tomar medidas que atestassem a própria lisura nem que fosse apenas para colher os benefícios eleitorais que isso lhes proporcionaria. A prática, porém, tem sido outra. Como se não bastassem os gastos que cada deputado ou senador tem direito de fazer, na forma das emendas parlamentares individuais e de execução obrigatória, das obscuras e injustas emendas de bancada, e do acesso aos recursos bilionários do fundo eleitoral e do fundo partidário, os políticos sempre parecem dispostos a aumentar a cota de dinheiro público que têm o direito de gastar.
Trata-se, é evidente, de uma anomalia do sistema brasileiro. Numa democracia madura, o ideal seria que os partidos não contassem com fundos públicos para manter suas máquinas. Nem que os parlamentares tivessem autoridade para decidir individualmente sobre o destino de uma parte do dinheiro do povo.

CORRESPONSABILIDADE — O que fazer diante disso? O ideal seria simplesmente eliminar o direito dos parlamentares apresentarem emendas e revogar as leis absurdas que regulamentam o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral. Mas esse sonho parece impossível: é mais fácil o parlamento brasileiro tornar ilegal a lei da gravidade do que abrir mão do direito de dispor de dinheiro público para financiar atividades de seu interesse.
Sendo assim, a solução que resta seria introduzir na lei e nos próprios estatutos partidários medidas que jogassem luz sobre o uso desses recursos. Uma ideia seria, como foi defendido nesta coluna há sete meses, na edição de 18 de abril de 2021, que se adotasse para os partidos políticos uma lei parecida com a que existe para os bancos brasileiros — que de alguns anos para cá tornaram-se corresponsáveis pelos atos de seus clientes.
Se em algum momento ficar provado que algum cliente alimentou sua conta com dinheiro sujo — obtido com o tráfico de drogas, a corrupção ou qualquer atividade ilegal — ou utilizou os recursos das contas para financiar algum ato criminoso, o banco é penalizado. A consequência disso é que os bancos passaram a ser mais exigentes na aprovação dos cadastros de quem deseja ser seu cliente.
O ideal seria, como fazem os bancos com seus clientes, que os partidos abrissem processos de due diligence para analisar a vida de cada candidato que se candidatasse por sua legenda. Ao pleitear um cargo, o político concordaria em ter as contas vasculhadas e os hábitos financeiros analisados por especialistas capazes de dizer se ele tem ficha limpa e uma conduta que o credencie a lidar com o dinheiro do povo. Esse seria o primeiro passo.

COMPLIANCE E DUE DILIGENCE — Os que fossem aprovados e viessem a ser eleitos deveriam, além disso, se submeter a um conjunto de regras para o uso do dinheiro e se comprometer com a prestação rigorosa de contas — ou seja, adotar uma política de compliance que desse clareza aos procedimentos e estabelecesse sanções para quem não os cumprisse.
Se em algum momento ficasse provado que um parlamentar fez uso indevido do recurso a que teve direito, o partido seria obrigado, sem prejuízo de outras sanções, a ressarcir os cofres públicos pelos prejuízos. Enquanto isso não acontecesse, o partido deixaria imediatamente de ter acesso aos recursos públicos. Além disso, as execuções das emendas de todos os integrantes da legenda seriam imediatamente suspensas.
São, evidentemente, medidas duras e a julgar pelo padrão de conduta que os políticos brasileiros, de um modo geral, demonstram no trato com o dinheiro público, dificilmente seriam adotadas com facilidade por qualquer legenda. A questão é que o cidadão — o mesmo cidadão que hoje torce o nariz e não confia em nada que venha dos partidos políticos — passaria a ter motivos para acreditar na política.
A legenda que largasse na frente e adotasse por conta própria critérios de transparência e desse publicidade a seus gastos (sem esperar que o Supremo Tribunal Federal mandasse suspender a execução das Emendas Secretas em nome desse mesmo princípio) receberia um julgamento muito mais generoso do que todas as demais. A partir do momento em que a primeira agremiação (independentemente de sua ideologia) adotar esse caminho, outras perceberão as vantagens eleitorais da transparência e seguirão na mesma direção.
Num sistema marcado pelos acordos de bastidores e pela falta de clareza, isso seria um importante primeiro passo. Por que não tentar?
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