Flor de Carne, em 2019 - Arquivo
Flor de Carne, em 2019Arquivo
Por Sergio Gustavo
Desde 1875, uma misteriosa flor brota anualmente em Vassouras, interior do Rio, segundo a história oral. Popularmente conhecida como Flor de Carne, ela teria desabrochado pela primeira vez em novembro daquele ano, na cabeceira da sepultura do Monsenhor Rios. Vigário na paróquia local, ele havia morrido dez meses antes. A partir de então, fiéis e curiosos visitam o Cemitério da Irmandade Nossa Senhora da Conceição para ver de perto a flor. Próximo ao túmulo, há uma série de placas de agradecimento a graças atribuídas ao Monsenhor, que deixou uma carta pedindo que seu corpo fosse enterrado em cova rasa e sem caixão.

Entre os interessados no enigma está Affonso Romano de Sant’Anna, que publicou uma crônica sobre o assunto após visitar Vassouras, em 2011. “Os mais fatalistas dizem que ela brota exatamente em 2 de novembro, dia dos mortos. Tem cheiro, não se sabe se de carne de escravos ou do Monsenhor. Da vida morta, de morte viva?”, escreveu ele. Neste Dia de Finados, Anderson Campos Soares, funcionário do cemitério, informou que a flor ainda não desabrochou; em 2018 e 2019 ela só apareceu na segunda quinzena de novembro.

A história registra especial atenção do Monsenhor Rios com as pessoas escravizadas, que compunham a maioria da população vassourense naquela segunda metade do século 19, segundo o Censo Demográfico de 1872. O pároco teria sido responsável por conseguir túmulos dignos para aqueles que não tinham direito nem mesmo a covas rasas. “Dizem que trouxeram botânicos de todo o mundo para estudá-la. Todos se perguntam: por que nasce só ali, naquela sepultura?; por que nasce e renasce ali há mais de cem anos? Seria a alma de escravos brotando do solo, agradecidas ao Monsenhor?”, questionou Affonso Romano em sua crônica. A dúvida sobre o forte odor tem resposta, e ela está em estudos científicos sobre uma flor similar, originária da Indonésia, a Amorphophallus titanum.

A asiática tem o apelido 'flor-cadáver' pela mesma razão que a vassourense: o forte odor de carne putrefata. Segundo artigo publicado na revista científica Plant Biology, o cheiro vem do aquecimento natural da coluna central da flor. “A temperatura da superfície chega a mais de 36 ° C, em comparação com a temperatura ambiente de 27 ° C. Ondas do odor parecido com a carniça são sincronizadas com esses pulsos de calor”, relata o trabalho. “Várias funções foram propostas para esta atividade energicamente cara: a atração de polinizadores, a estimulação de sua dispersão e a provisão de energia térmica para larvas ou adultos, enquanto eles estão envolvidos nas estruturas reprodutivas das plantas”, explica outra pesquisa, publicada na revista acadêmica Plant, Cell & Environment.

Há, no entanto, diferenças entre a flor-cadáver e a flor de carne. Enquanto a primeira chega a medir 3 metros de altura, a segunda tem algo em torno de 35 centímetros. Além do tamanho, há outra desigualdade fundamental entre elas: a asiática vive no máximo 40 anos e floresce apenas três vezes; a vassourense surge anualmente, sempre em novembro, há mais de 140 anos.