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Por Gabriel Chalita Professor e jornalista

O dia amanheceu preguiçoso. É domingo. É Domingo de Carnaval. Em um ponto alto da cidade, uma tal Maria engole o seu café com leite e pensa no desfile da sua escola de samba. Foram meses de preparação. Maria trabalha como costureira. E, desde sempre, desfila usando a fantasia que ela mesma produz. A cada ano sua escola conta uma história. Sua escola e, também, as outras.

Desfilam na Avenida personagens, lugares, intenções. A música já está decorada. Sambar, ela sabe muito bem. O Carnaval faz reviver, nas memórias de Maria, vidas que se cruzaram com a sua. Amores que já se foram. Decepções. Vibrações. Quanta história o seu barraco já presenciou. No morro, ela canta os sambas antigos.

O marido era baterista. Morreu dessas mortes que ainda existem aos montes. Bala perdida. Perdeu Maria, naquele dia, um pedaço significativo do seu coração. Era cedo demais para despedidas. Morreu ele em um dia ensolarado. Num mês de agosto. Véspera do Dia dos Pais. As duas filhas de Maria cresceram sem pai. A vida foi e é dura para elas. O tempo foi cimentando ressentimentos. E a alegria voltou a iluminar as manhãs daquele barraco. A memória do pai ainda vive ali. O nome do pai está no filho da filha mais velha de Maria. Ah, Maria tem seis netos. Vão todos juntos desfilar na escola de samba.

Maria gosta de costurar. Fala sozinha enquanto ouve o barulho da máquina quase nova. A velha ainda mora na casa em caso de necessidade ou apenas por uma recordação do tempo dos inícios. A nova, mais moderna, foi presente da segunda filha. As três mulheres viveram sozinhas durante algum tempo. Até que o tempo trouxe os seus maridos. Maria não quis se casar novamente. Teve alguns enredos breves, mas preferiu dormir apenas com suas lembranças. Gosta é de Carnaval. Não é dada a bebidas. Não precisa delas para se alegrar. Insiste que gosta de cantar os sambas-enredo de outros carnavais. Cada um contando uma história. Explica que acha lindo, em tão pouco tempo, dizer tanta coisa em uma avenida. Suas clientes levam roupas para serem arrumadas e sonhos para serem realizados.

Costura Maria vestidos de noiva e rompe rasgos causados por quedas ocasionais. Costura botões e faz bainhas. Inventa modelos e ouve ideias. Fica ali entre panos e linhas se esmerando na arte de embelezar a vida.

Às noites, vai à oração ou aos ensaios de Carnaval. Não acha que sejam incompatíveis. Pecado é fazer mal ao outro. E fazer mal se faz em igrejas ou em escolas de samba. O bem, também. Apesar da dor da perda do marido e de tantas outras que foram chacoalhando os seus sentimentos, Maria se alimenta de bondades. Gosta de gostar das pessoas. De surpreendê-las com alguma gentileza. De sorrir um sorriso profético. De dias melhores. De tempos menos duros.

Fez ela o vestido de casamento das duas filhas. Fez as primeiras roupas dos primeiros netos. Fez fantasias de tantos mestres-salas e porta-bandeiras que nem se lembra. E as roupas de comissões de frente. E as dos integrantes da bateria. Bateria. Quando pensa nisso, enxuga uma lágrima teimosa que a faz lembrar do seu marido experimentando, ano a ano, as roupas que usaria para desfilar na Avenida.

Na avenida da vida, Maria resolveu nunca deixar de estar. No seu jeito simples de viver os carnavais e todos os outros dias. Enquanto engole o café com leite, Maria olha para o pão com manteiga e se delicia com o prazer de poder se alimentar. Cantarola sozinha o samba-enredo deste ano. Para um pouco. Olha para o dia que está nascendo e agradece a Deus por estar viva. E por viver mais um Carnaval. Daqui a pouco a casa estará cheia. As filhas moram perto. E as histórias moram junto.

O dia amanheceu preguiçoso, mas vai demorar para ir embora. É Carnaval...

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