Durante o período de isolamento na pandemia, todos nós, de alguma maneira, nos reinventamos em muitos sentidos. Desde aprender a ter a solidão como companheira e confidente, até criar coragem para fazer coisas inusitadas em horários tidos como não usuais. Quem não tinha rotina adorou organizar uma, mas aberta, sem grades e nem satisfação para dar. E quem já tinha, amou não ter que cumpri-la.
Também parece ter havido um cuidado maior para valorizar o olhar do outro, a dor do outro e o gesto do outro. Mesmo o outro não estando ali ao lado. Talvez, por termos que enfrentar a pandemia tendo um sádico como presidente, alguém que jamais teve qualquer empatia ou solidariedade com nada nem com ninguém - um monstro -, passar a nos preocupar com os detalhes, numa tentativa de olhar o mundo também com o olhar de quem estivesse dividindo o instante com a gente, ganhou um valor especial. E cada instante passou a ser realmente um instante de significado.
Até nos vários grupos de WhatsApp a gente se reinventou. Em alguns, fomos cortando os fascistas, os negacionistas e os chatos, nos permitindo encontrar uma identidade que justificasse estarmos conectados. Em um outro, passamos a prestar atenção e a esperar, ansiosamente, certas pílulas literárias que uma companheira coloca todos os dias e alimenta a alma. Acaricia. Instiga.
Enfim, vamos nos posicionando e mudando o olhar para o enfrentamento necessário neste tempo de angústia e indefinição. E nos tornamos, pelo menos alguns de nós, talvez mais politizados, mais exigentes e mais questionadores. Quem não se manifestava em debates nos meios acadêmicos ou nos bares, encontrou palanque nos grupos virtuais e, claro, a necessidade vital de resistir à barbárie institucionalizada canalizou nossas perplexidades, raivas e frustrações. Tudo isso com os fossos cavados a seco que distanciaram amores antigos e impediram novos, mas também reinventaram e salvaram outros. Uma grande sacudida geral.
No dia do Réveillon, pude sentir na prática o significado de um gesto simples de cuidado e afeto por parte de um casal. Gesto que salva e protege. Meus queridos amigos, Antônia e Marcelo Freixo, nos convidaram para passar a virada na casa de Pedro e Adriana Varejão. Sou tão fã dela que fiquei em dúvida sobre ir.
Quando chegamos, Valéria, minha mulher, e eu, às 23:30, a própria dona da casa estava fazendo o teste de covid em todos os convidados. Montou uma mesa no meio da sala e ela mesma, usando a espátula e o material próprio, realizava o exame. Éramos poucos os convidados, mas todos fizeram. Eu tinha passado o dia correndo na praia e bebendo bons vinhos para me despedir daquele ano maldito. Estava bem-humorado e sem sentir absolutamente nada. Entrei na fila para cumprir o rito. E, para minha surpresa, testei positivo.
Hoje, temos um país jogado às traças e que está à deriva. O governo federal empenhou-se em não comprar vacinas, em não fazer campanha de imunização e em desprezar o SUS, nosso exemplar sistema universal de Saúde. Nossa estrutura para testagem é absolutamente inexistente. E ainda insistem em prosseguir com a ridícula e criminosa consulta popular para decidir sobre a vacinação de crianças e adolescentes.
Por isso me encantou tanto o gesto do casal que nos recebia. Como eu estava completamente assintomático, provavelmente ali mesmo na festa, poderia ter infectado várias outras pessoas. Afinal, é uma tradição os cumprimentos mais efusivos na virada do ano, até porque estaríamos exorcizando os demônios do fascista que nos preside e comemorando os novos tempos que se avizinham.
Essa foi a razão pela qual comecei dizendo dos pequenos gestos e dos instantes. Parar a festa de Réveillon que faziam e preparar pessoalmente o teste é um ato doce de civilidade, de solidariedade e de consciência de grupo. Desde então, estou isolado no meu apartamento e sinto uma certa alegria e conforto por não ter infectado ninguém. Achei isso tão forte que não reclamei um minuto sequer, nem na hora do resultado positivo.
Olho em volta e vejo na mídia o recrudescimento desestabilizador do vírus. E faço um brinde imaginário à Adriana e ao Pedro. Que todos tenhamos um ano de mais cuidados, mais afetos e mais ousadias para que em outubro a gente possa comemorar a entrada de uma nova vida. Eu tive que me segurar nessa virada, mas estou me guardando e quero abraçar e beijar a todos os que estiverem no projeto de um país mais justo, igual e solidário.
Socorro-me ao velho poeta Leão de Formosa, no poema Ainda:
“Ainda é o advérbio lindo da esperança. Que a palavra trema dentro da frase infinda. Nos lábios da criança o sorriso é ainda. Ainda flor é a rosa. Ainda paz é o poema.”
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