Por O Dia

Estávamos vivendo o final do ano de 1954. As mulheres, no máximo, se formavam como professoras (saudades das normalistas, lindas, do Instituto de Educação, ali na Rua Mariz e Barros) e os homens usavam, ainda, terno e gravata. A ousadia eram os 'passeios' à Barra da Tijuca, ou ao Joá, ou aos bailes de Carnaval no Quitandinha, Copacabana Palace e Teatro Municipal — esses para os abastados — ou nos clubes de futebol. Uns poucos, com a família, viajavam para Petrópolis e Miguel Pereira ou, quem sabe, Mangaratiba?

Os carros de passeio ainda eram somente aqueles bólidos enormes norte-americanos ou os pouquíssimos europeus, bem menores. Poucas motocicletas rodavam nas nossas ruas. Ainda víamos algumas com o 'sidecar'. Lembram (aquele 'barquinho', acoplado na motocicleta, com um lugar para o carona corajoso)? Ah, e o velho e saudoso bonde, cruzando a cidade-estado de ponta a ponta a preços módicos. A Maria Fumaça estava quase se aposentando e os trens elétricos já haviam dominado as ferrovias. Onde não havia eletrificação na ferrovia, apelavam para as máquinas movidas a diesel, puxando os vagões. Foi assim que conheci outras praias, até então vistas por fotografias, e viajei pelos trilhos da Linha Auxiliar: Ilha da Madeira, Itacuruçá, Mangaratiba.

Praias? Ramos, ainda não tão poluída, apesar das palafitas dos vizinhos parques Magarinos Torres e União, hoje Complexo da Maré. E também as da Ilha do Governador — a mais conhecida era a da Pedra da Onça (que, na verdade, é a estátua do gato-maracajá, erguida em 1920), no bairro do Bananal. Estas, frequentadas por moradores e 'estrangeiros' que vinham de outros bairros, principalmente do subúrbio da Leopoldina. E as do Calabouço, Flamengo e a recém-descoberta Copacabana, sem calçadão, mas já com belas mulheres desfilando seus maiôs bem comportados.

Eu frequentei muito o Posto 2. Ou pegava dois bondes ou usava o lotação (mais tarde ônibus) da linha Francisco Sá-Leblon. Levava um embornal com lanche e água da bica em garrafa térmica. Os casarões da Avenida Atlântica eram espetaculares. Chamavam muito a atenção A maioria de dois andares, amplos quintais, muros baixinhos, carrões nas garagens... Parecia que todos tinham uma vida tranquila, quase inocente, difícil ouvir gente reclamando de alguma coisa. Que paraíso... Além disso, quando eu cometia algum pecado, era ir ao confessionário e contar tudo. Recebia uma penitência (que cumpria integralmente), zerava tudo e, era só começar tudo de novo. Tinha certeza de que, quando morresse, iria pro Céu. Eita mundo bão! E, ainda tinha o dinheirinho da mesada.

Foi a partir de 1958 que meu mundinho desmoronou. Não teve padre que desse jeito. Como castigo por jogar bola na rua, vestindo cueca, fui parar na redação do jornal Ultima Hora, pertinho de casa. Comecei na madrugada, com o inseparável embornal. Sempre sonolento, descobri que a violência, as mortes, a maldade, o mundo-cão existiam e viviam ao meu redor. Difícil essa transição. Do paraíso ao inferno em um estalar de dedos, em meio aos 14 anos de idade.

Vi e vivi o que aconteceu no meio da polícia, da política, da corrupção, da malandragem, da maldade e muito pouco da bondade. Vi muita gente morrendo (em dois casos, pessoas morreram em meus braços), viajei meio mundo, passei fome com dinheiro no bolso, vi o Papa duas vezes, encarei tragédias, desastres de aviões, naufrágios e ainda cheguei a cobrir futebol (o time do Botafogo ainda treinava em General Severiano). Nesse tempo todo, procuro, ainda, aquele paraíso que vivi nos anos dourados. Nem na Ilha Lesbos, na Grécia, consegui achar. Mas, como disse Rui Barbosa, difícil mesmo é ter vergonha de ser honesto depois de ver tantas injustiças e ver agigantar-se os poderes nas mãos dos maus.

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