Por Luarlindo Ernesto
Uma segunda feira, 8 horas da matina no andar das gavetas refrigeradas do velho prédio do IML, Centro do Rio, não é para qualquer um que não esteja habituado ao ambiente. E o odor que toma conta do salão, acreditem, é aquele que todos esperam: nauseabundo. O parceiro do jornal que me acompanhava, o Clarimundo, estava curtindo uma ressaca federal. A cor dele, pálida, até que combinava com a dos mortos que estavam nas gavetas. Clarimundo ainda estava trêmulo, reclamando de náuseas e com as pernas bambas. Que boa companhia para reportagem que pretendiamos fazer. Eita vida de repórter. O negócio foi o seguinte: uma mulher, bem jovem, loura, olhos verdes, aparentando uns 18 anos, trajando roupas, e peças íntimas, de boa qualidade, foi jogada de um carro em movimento na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, altura do Posto 4, em Copacabana em uma madrugada desta vida. O caso se deu lá pelo ano de 1978. Mas, uns oito ou doze depois, a polícia não conseguia identificar a morta. Então, resolvemos tentar auxiliar a investigação, De início, para dar andamento ao caso, teríamos que saber quem era a desconhecida. O caminho era o mais óbvio: IML.

Com autorização do Chefe da Polícia, expliquei ao diretor do IML o plano para tentar saber quem era a desconhecida. Precisávamos de fotos do rosto do cadáver para, na Redação, fazer retoques e abrir os olhos da morta, dando aparência de que a foto fora feita em vida. Com a publicação, aguardaríamos informações de vizinhos, amigos, parentes para a identificação oficial. Simples, não ? Então, já no salão dos mortos refrigerados, puxamos a gaveta certa e encaramos a realidade (até então, na teoria). Clarimundo, fotógrafo, começou a dar mais sinais de instabilidade estomacal. Calcei as luvas e iniciei o trabalho de arrumar os cabelos do cadáver, na tentativa de melhorar a aparência. Clarimundo já estava na fase de regurgitação. Saiu correndo à procura de um banheiro. Voltou, mais pálido, uns dez minutos depois. Homessa, o corpo já estava fora da refrigeração cerca de trinta minutos e com a mudança de temperatura, começou a suar ! Clarimundo voltou ao banheiro, demorando mais outros dez minutos. Eu? Ora, desesperado, querendo sair dali, precisando de ar puro, com o odor peculiar invadindo até minhas roupas. Que situação terrível. Bem, Clarimundo regressou - todo molhado, parecendo que havia tomado um banho, vestido - fez as fotos, acenou dizendo que estava pronto o trabalho. Fechei a gaveta, corri para a porta de saída e fui direto para a sala do diretor. No gabinete, Clarimundo bebeu todo o estoque de água que estava na geladeira. Agradeci a boa acolhida e saímos.

No elevador, lá pelas dez horas da manhã, lembrei de uma bar, coladinho ao prédio do IML, bem à moda antiga, na Rua dos Inválidos. Foi meu caminho, com Clarimundo no meu reboque. Saudei o ilustre taberneiro e pedi uma generosa e bem servida dose da aguardente, a mais forte, que tivesse na prateleira. Clarimundo pediu, também. Levei a bebida até um lavatório e, quando ia desinfetar as mãos, Clarimundo engoliu a dose dele, de uma só vez ! Quando notou que eu não havia bebido, tomou fôlego e perguntou: -" Não era para beber ?" Ah, identificamos a morta. Era de Santa Catarina, veio para o Rio, na casa de parentes do bairro Encantado. Ficou deslumbrada com as inebriantes e perigosas luzes de Copacabana, foi atirada do carro do namorado e atropelada por um outro veículo em seguida. Morreu no local. Clarimundo, após tratamento intensivo com chá de boldo, melhorou dois dias depois.